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A guerra dos camponeses alemães

por Laurent Ripart

Há 500 anos, a Alemanha foi inflamada por uma grande revolta camponesa, que ficou conhecida como Bauernkrieg (Guerra dos Camponeses). Reunindo até 300 mil   homens, os exércitos de trabalhadores e trabalhadoras do campo abalaram o domínio dos senhores, antes de serem esmagados em um feroz banho de sangue.

Depois de experimentar um forte crescimento no século XV, que compensou o choque demográfico causado pela Peste Negra de 1348 e seus múltiplos rebotes, a Europa entrou em um período mais difícil no início do século XVI. Em um mundo que see via novamente populoso, o crescimento demográfico esbarrava nos limites da produtividade agrícola, que estava diminuindo à medida que as terras desmatadas para sustentar a população crescente eram cada vez menos férteis. Esse declínio na renda disponível levou a um endurecimento das demandas dos senhores feudais, pois a alta fertilidade entre as famílias da classe senhorial, combinada com os tributos em alta cobrados pelos novos estados modernos, estava empobrecendo a nobreza e as ordens religiosas que eram grandes proprietárias de terras.

Um contexto de tensões sociais

Como resultado, os senhores, por toda a Europa, procuraram aumentar as corvéias (trabalho compulsório dos servos nas terras senhoriais) e as taxas, tornando-se mais exigentes na cobrança de dízimos e multiplicando o número de ações judiciais para que a servidão de seus camponeses fosse reconhecida. Esse processo de reação senhorial encontrou resistência por parte dos camponeses: em 1489, os camponeses da Bretanha (região no Noroeste da atual França) se revoltaram, seguidos, em 1492, pelos "trajes vermelhos" de Faucigny (Saboia, Sudeste francês). A revolta assumiu uma dimensão europeia, como testemunhou a poderosa revolta húngara de 1514, durante a qual cerca de 100 mil camponeses se juntaram ao exército popular de György Dózsa. A Alemanha foi particularmente afetada pela revolta: em 1493, o campesinato da Alsácia foi incendiado pela conspiração Bundschuh (sapato amarrado). Depois a sedição se recuperou em 1502 na região de Brisach, antes de incendiar o campo de Friburgo em 1513.

Agitação religiosa

Numa sociedade cristã, qualquer demanda social ou política necessariamente assumia uma forma religiosa. As revoltas camponesas não eram exceção, e muitas vezes apresentavam demandas de natureza religiosa, como no caso dos camponeses alsacianos do Bundschuh, que se reuniram em março de 1493 na montanha de Ungersberg para exigir a abolição do acúmulo de benefícios eclesiásticos e a expulsão dos judeus. Entretanto, no contexto da Guerra dos Camponeses, a questão religiosa era ainda mais urgente, pois a Alemanha havia se tornado um grande foco de agitação, em rebelião contra a autoridade da Igreja alemã.

Em 1517, Lutero publicou suas 95 teses em Wittenberg, rejeitando a autoridade do papa e do clero e pedindo um retorno à mensagem original do Evangelho. Condenado pelo imperador em 1521, Lutero, no entanto, beneficiou-se da proteção do Príncipe-Eleitor da Saxônia1 e, assim, pôde estabelecer uma nova igreja, à qual aderiu um grande número de seguidores em toda a Alemanha. A reforma luterana, portanto, abriu uma brecha importante na ideologia do feudalismo, na medida em que a autoridade eclesiástica era a garantia da ordem social.

A revolta

Em junho de 1524, o desejo de alguns senhores dos condados de Stühlingen e Lupfen, ao sul da Floresta Negra, de impor uma nova taxa de coleta de caracóis aos seus camponeses provocou uma revolta dos servos na região. Recusando-se a aceitar essa nova forma de servidão, os camponeses pegaram em armas para se defender. A revolta se espalhou lentamente durante o verão e o outono seguinte, embora tenha se limitado ao Sul da Floresta Negra e ao Oeste da Suábia.

Em janeiro de 1525, a revolta dos camponeses da abadia suábia de Kempten deu novo ímpeto ao movimento. Em fevereiro, a rebelião se espalhou rapidamente por toda a Alemanha. Os camponeses se organizaram em bandos armados, que se tornavam ainda mais fortes com a participação de artesãos urbanos. No início de março, a revolta dos camponeses havia se tornado uma grande força, capaz de tomar muitas cidades. A sociedade como um todo foi virada de cabeça para baixo, e a presença de mulheres entre os conspiradores atesta o escopo social do movimento.

Os Doze Artigos de Memmingen

Em 19 de março de 1525, representantes dos insurgentes se reuniram na cidade de Memmingen (cerca de 50 km a oeste de Munique) para publicar seu programa, escrito em alemão pelo peleteiro Sebastian Lotzer2. Imediatamente impresso sob o título Doze Artigos do Campesinato, o texto teve uma circulação espetacular, com pelo menos 25 edições diferentes publicadas em dezenas de milhares de cópias, às quais devem ser adicionadas as muitas cópias manuscritas, que eram frequentemente lidas em público nas aldeias alemãs. Esses Doze Artigos, dos quais existem várias versões, embora com variações limitadas, testemunham a violência do regime senhorial e as aspirações do campesinato de viver uma existência um pouco menos dura.

Os Doze Artigos visavam abolir a servidão, que continuava sendo um estigma insuportável para o campesinato. O Artigo 3, sem dúvida o mais radical, pedia a emancipação dos servos, enquanto o Artigo 11 pedia a abolição do direito de "mainmorte", em outras palavras, da possibilidade de os senhores de se apoderarem de parte ou de toda a propriedade de seus servos quando estes morressem. Quanto ao resto, os Doze Artigos não definiam um programa revolucionário, mas buscavam limitar a violência e a arbitrariedade do regime senhorial. Os camponeses de Memmingen concordavam em pagar direitos sobre a terra, mas exigiram que eles não fossem aumentados arbitrariamente. Acima de tudo, eles exigiam o direito de viver de seu trabalho e pediam que as taxas fossem revisadas de modo que nenhum camponês fosse forçado a se endividar com uma taxa impagável. Essa moderação nas demandas refletia um movimento em que a violência era relativamente limitada, com a maioria dos camponeses buscando chegar a um acordo com os senhores, em vez de realmente derrubar o regime senhorial.

Uma grande parte dos Doze Artigos também foi dedicada aos direitos de uso dos bens comuns, ou seja, das águas e das florestas, exigindo que tivessem acesso livre àqueles bens. No que diz respeito ao direito de propriedade, entretanto, os camponeses limitaram suas demandas às terras comunais, uma vez que os Doze Artigos especificavam que as florestas e os rios que os senhores haviam comprado legitimamente não estavam em questão. Em todo o texto, os camponeses enfatizaram seu respeito pela ordem e pela hierarquia, explicando, por exemplo, que, embora não quisessem mais ser servos, "isso não significa que desejamos ser absolutamente livres e sem autoridade".

Rejeição do sistema senhorial

A revolta dos camponeses alemães não foi surpreendente, exceto talvez por sua escala. A história da Idade Média e do Antigo Regime é uma longa sequência de revoltas camponesas. Dos Jacques franceses aos Tuchins do Languedoc ou do Piemonte, passando pelos Laboureurs ingleses, os Taborites boêmios e os Croquants da Aquitânia, a constante repetição de revoltas camponesas testemunha uma profunda rejeição da ordem senhorial. Os historiadores assinalam essa rejeição de muitas outras formas, por meio de inúmeras sabotagens, ataques, julgamentos e disputas sobre costumes, que sempre caracterizaram a resistência camponesa à dominação social dos senhores.

Ao contrário do que muitos historiadores continuam ensinando, o feudalismo nunca foi uma ordem tranquila. Fundado na violência e na extorsão, o regime senhorial sempre enfrentou a resistência do campesinato, sua luta milenar contra a arbitrariedade e a dominação, e sua capacidade de lutar para recuperar os direitos que lhe haviam sido tirados. Desse ponto de vista, a grande e bela revolta do campesinato francês, que pôs fim ao regime feudal no verão de 1789, nada mais foi do que uma apoteose, o último ato da antiga luta do campesinato contra uma ordem injusta, uma luta da qual os camponeses alemães foram protagonistas em 1525.

A religião e a luta de classes

Em seu estudo de 1850 sobre a Guerra dos Camponeses Alemães, Friedrich Engels se propôs a demonstrar que a luta social dos camponeses contra a ordem feudal foi baseada em ideias religiosas, que ele via como o campo ideológico da luta de classes. De qualquer forma, os Doze Artigos testemunham a forte dimensão religiosa que a revolta dos camponeses alemães havia assumido. Todo o texto é construído como um manifesto evangélico, cujo objetivo é denunciar os senhores ímpios que se recusavam a colocar a palavra de Deus em prática. Seu primeiro artigo, por exemplo, pede que os pastores sejam eleitos pelas comunidades, enquanto o segundo exige que os dízimos sejam pagos de acordo com os métodos definidos pela Bíblia e não pelos costumes dos senhores.

Todas as reivindicações sociais dos camponeses tinham a intenção de estar alinhadas com os Evangelhos, tanto que o décimo segundo artigo especificava que, se seus detratores pudessem demonstrar que qualquer parte de seu programa era contrária às Escrituras, eles concordariam em renunciar a ela. Os camponeses exigiam a abolição da servidão, argumentando que Cristo havia redimido todos os homens com seu sacrifício e que, portanto, todos deveriam ser libertados. Da mesma forma, exigiram que lhes fosse permitido matar a caça que comia suas plantações, explicando que esses animais irracionais estavam destruindo o que Deus havia cultivado para uso humano. Eles também citaram o capítulo 1 do Gênesis para nos lembrar que Deus havia dado ao homem poder sobre as aves do céu e os peixes da água, antes de concluir que a divindade havia, portanto, dado aos homens o direito universal de pescar e caçar, que os senhores não poderiam tirar deles.

As revoltas camponesas na Idade Média estavam sempre imbuídas de evangelismo. Se   organização social estava baseada nas Escrituras, só poderia ser desafiada por argumentos religiosos. Assim, os lavradores ingleses do século XIV legitimaram sua revolta invocando o Gênesis para perguntar: "Quando Adão cavava e Eva fiava, quem era então um cavalheiro?” De seu lado, as autoridades eclesiásticas pediam que a revolta fosse suprimida, citando em particular o capítulo 13 da epístola de Paulo aos Romanos, que afirma: "Todo aquele que se opõe à autoridade resiste à ordem que Deus estabeleceu". Entretanto, a Guerra dos Camponeses Alemães assumiu uma dimensão religiosa ainda mais forte, na medida em que estava ligada à revolução evangélica que Lutero estava promovendo.

O apelo de Lutero à repressão

Os camponeses logo ficaram desiludidos ao descobrir que Lutero não tinha a intenção de transformar sua reforma da Igreja em uma revolução social. Lembrando que a submissão à ordem social e às autoridades era o fundamento das Escrituras, Lutero condenou a revolta dos camponeses em termos fortíssimos. Em maio de 1525, ele publicou seu Contra as hordas criminosas e saqueadoras de camponeses, pelo qual conclamava a nobreza a empreender uma cruzada social contra os camponeses. Lutero usou um tom extremamente violento: "Eles devem ser despedaçados, suas gargantas cortadas e estranguladas, em segredo e em público. É por isso, meus caros senhores... se vocês caírem na luta, nunca terão uma morte mais santa!”

Ao condenar os camponeses, Lutero também decidiu romper com alguns de seus apoiadores, em especial os pregadores evangélicos que acompanhavam os camponeses e legitimavam suas ações. O mais conhecido deles foi Thomas Müntzer, que incentivou os camponeses a pegarem em armas citando o capítulo 10 do Evangelho de Mateus: "Não vim trazer a paz, mas a espada". A oposição entre Lutero e Müntzer tornou-se chave interpretativa no trabalho de Engels sobre a Guerra dos Camponeses:  ele viu naquele enfrentamento uma prefiguração da estrutura política e social da Alemanha, que havia encontrado expressão na revolução de 1848. Para Engels, Lutero era a personificação do campo "reformador burguês", que poderia ser hostil à nobreza feudal, mas que, no entanto, acabava se unindo a ela assim que se sentisse ameaçado pela revolução social. Em contraste, Engels via Müntzer como “um representante teórico do partido comunista camponês" e em seu evangelismo radical a expressão ideológica dos interesses materiais do campesinato alemão.

O fim do jogo

Os senhores alemães não esperaram que Lutero soasse o alarme. Já em abril de 1525, os príncipes conseguiram reunir tropas que esmagaram os contingentes de camponeses inexperientes e mal armados. Mesmo em maior número, as forças camponesas não eram páreo para os exércitos profissionais. A revolução camponesa se desintegrou em questão de semanas, com a única exceção de Tirol, onde a luta se estendeu até 1527. A repressão foi terrível. Os historiadores estimam que cerca de 100 mil camponeses foram mortos, muitos outros torturados ou mutilados. Para o campesinato alemão, no entanto, o resultado da revolta não foi totalmente negativo, pois os senhores alarmados passaram a adotar uma abordagem mais cautelosa, o que os impediu de afundar em profunda servidão, como aconteceu na Europa Oriental. 

29 de junho de 2025

  • 1

    Príncipe de um pequeno estado alemão cuja capital era Wittemberg.

  • 2

    Quellen zur Geschichte des Bauernkrieges, ed. G. Franz, Darmstadt, 1963, pp. 174-179, com uma tradução em inglês em J. H. Robinson, Readings in European History, A collection of extracts from the sources chosen with the purpose of illustrating the progress of culture in Western Europe since the German Invasions, Boston/New York/Chicago/London, 1904-1906, t. II, pp. 94-99.

المؤلف - Auteur·es

Laurent Ripart

Laurent Ripart é historiador, autor de várias obras sobre a Idade Média, membro do NPA-L'Anticapitaliste (uma organização membro da IV Internacional) e ex-vereador.

Fotografia © Photothèque Rouge /Martin Noda / Hans Lucas.