
O inverno político da Rússia instalou-se mesmo antes do início do conflito armado com a Ucrânia, que os documentos oficiais designam eufemisticamente por “operação militar especial”. A pandemia de Covid-19 em 2020 já tinha servido de pretexto para restringir drasticamente a liberdade de reunião. Seguiram-se alterações constitucionais que prolongaram o mandato do Presidente russo Vladimir Putin – que já durava 20 anos – por mais 12 anos, tornando-o efetivamente vitalício. A pandemia também serviu de justificação para alterar as leis eleitorais de forma a tornar quase impossível o controlo e a contagem dos votos.
No entanto, no outono de 2021, durante as eleições para a Duma, os eleitores de Moscovo tentaram eleger candidatos da oposição na maioria dos distritos. Um tal escândalo na capital era inaceitável. O problema foi resolvido através do voto eletrónico à distância. Assim que os resultados deste foram adicionados à contagem geral, os candidatos da oposição (que muitas vezes estavam a liderar por margens impressionantes) foram subitamente ultrapassados pelos candidatos do partido no poder. A oposição parlamentar oficialmente sancionada, tendo-se resignado a este resultado, perdeu toda importância política. Estes partidos deixaram de ser vistos como um canal através do qual os cidadãos podiam manifestar a sua insatisfação com as políticas governamentais.
Restava apenas a oposição não sistémica, cujo representante mais influente era Alexei Navalny. No entanto, a nova legislação repressiva destruiu rapidamente a rede nacional de gabinetes que ele tinha construído. Os seus líderes foram detidos ou forçados ao exílio. O próprio Navalny, regressado da Alemanha onde tinha sido tratado na sequência de uma (suspeita de) tentativa de envenenamento, foi detido no aeroporto e morreu sob custódia em 16 de fevereiro de 2024. Recentemente, um tribunal russo decidiu que a simples menção do nome “Alexei” poderia ser considerada um sinal de extremismo.
Como parte da repressão mais alargada contra a dissidência, foi promulgada a infame lei dos “agentes estrangeiros”. Ao abrigo desta lei, qualquer cidadão russo que se considere estar sob influência estrangeira pode ser rotulado de agente estrangeiro sem qualquer controlo judicial. As pessoas designadas como agentes estrangeiros estão impedidas de ensinar em universidades estatais, de participar em campanhas eleitorais e, inclusivamente, estão sujeitas a restrições no que respeita à obtenção de rendimentos provenientes de trabalhos criativos ou ao arrendamento de propriedades. A lei continua a ser alargada com novas proibições e restrições.
As autoridades pressionaram ativamente os designados “agentes estrangeiros” a emigrar, enquanto os que permaneceram na Rússia tiveram de cumprir numerosos requisitos burocráticos humilhantes sob a ameaça de multas e, eventualmente, de prisão. Além disso, foi criado um registo de terroristas e extremistas, que permitia a inclusão de qualquer cidadão com base numa decisão administrativa. Uma vez inscrito na lista, o indivíduo não só perde o acesso às suas contas bancárias, como também fica proibido de efetuar transações em dinheiro através dos bancos sem autorização especial.
Assim, mesmo antes de os tanques russos avançarem em direção a Kiev, em 24 de fevereiro de 2022, já tinha sido posto em prática um vasto sistema de medidas repressivas, congelando efetivamente a vida política no país. O conflito armado serviu apenas de pretexto para apertar ainda mais os parafusos. Foram promulgadas ou endurecidas dezenas de leis repressivas adicionais. Segundo as estimativas, o número de presos políticos varia entre 1.000 e 3.000, embora haja razões para crer que estes números estão significativamente subestimados.
Todos os partidos da Duma apoiaram unanimemente as políticas do governo. No entanto, também eles foram objeto de purgas sistemáticas. Os ativistas e políticos considerados pouco fiáveis foram rotulados de agentes estrangeiros (como Oleg Shein, de Uma Rússia Justa, e Evgeny Stupin, do Partido Comunista da Federação Russa). Esses indivíduos foram afastados dos cargos partidários, excluídos das listas eleitorais e forçados a sair do país. Muitos calaram-se por medo, mas mesmo isso nem sempre garantiu a segurança.
Uma vaga de purgas varreu as universidades, levando ao despedimento de professores suspeitos de livre-pensamento. Jornais, revistas e páginas de Internet foram encerrados. Foram feitas várias tentativas, sem sucesso, para bloquear as redes sociais, mas o Estado deparou-se com obstáculos tecnológicos. O êxodo maciço de pessoas insatisfeitas com a situação, juntamente com a fuga de jovens que se evadiram da mobilização no outono de 2022, parece ter posto fim à atividade cívica independente, transformando o país num deserto político. Pelo menos, é essa a impressão que se pode ter de um olhar superficial, sem prestar atenção a processos mais profundos que muitas vezes escapam à atenção dos observadores desatentos.
A realidade do acesso dos russos aos recursos em linha da oposição sugere um quadro mais complexo. Não se trata apenas do facto de os críticos do regime poderem emitir a partir do estrangeiro, à semelhança das “vozes inimigas” que outrora se infiltravam nos lares soviéticos através das ondas de rádio. A luta em curso pela Internet demonstra uma resistência generalizada das bases. Sempre que o YouTube fica mais lento ou que outro serviço ou rede social é bloqueado na Rússia, inúmeras pessoas com conhecimentos técnicos desenvolvem aceleradores e software para contornar as restrições, muitos dos quais são completamente gratuitos.
O número crescente de presos políticos aponta também para o aumento da dissidência. Além disso, o seu perfil social e cultural mudou dramaticamente. Anteriormente, um preso político típico era um jovem membro da intelligentsia, mas hoje em dia, cada vez mais pessoas encarceradas são de meia-idade, muitas vezes com um nível de educação menos formal e dedicadas ao trabalho físico. As suas opiniões políticas diferem significativamente das da oposição liberal urbana. Por exemplo, tendem a encarar o passado soviético de forma muito mais positiva, especialmente as suas políticas sociais. Neste sentido, o movimento de protesto está a tornar-se mais popular, mais socialmente orientado e mais de esquerda.
Um indicador importante da disponibilidade da sociedade para a mudança surgiu em janeiro de 2024 com a campanha para nomear Boris Nadezhdin como candidato presidencial. O simples facto de lhe ter sido permitido recolher assinaturas sugeria que uma fação da elite governante estava, pelo menos, preocupada em manter a aparência de procedimentos democráticos. Nadezhdin, apesar da sua posição politicamente moderada, apresentou-se como um “candidato anti-guerra”. No entanto, a maior surpresa foi o rápido crescimento a nível nacional dos seus escritórios de campanha, que surgiram “como cogumelos depois da chuva”, com uma participação significativa de vários grupos de esquerda. Quando a campanha de Nadezhdin reuniu 300.000 assinaturas – ultrapassando largamente as 100.000 exigidas – foi, como era previsível, desqualificado da corrida. No entanto, este episódio demonstrou claramente a existência de um potencial de protesto significativo no país.
Enquanto os exilados liberais encararam a campanha de Nadezhdin com ceticismo, na melhor das hipóteses, os ativistas de esquerda que permaneceram na Rússia apoiaram-na em grande medida, embora de forma crítica. É igualmente digno de nota o facto de as plataformas online de esquerda, apesar de todos os riscos e desafios, se esforçarem por continuar a operar a partir do interior da Rússia. Este facto exige muitas vezes que sejam mais cautelosas nas suas críticas, mas garante que se mantenham ligadas ao seu público. Mesmo os poucos meios de comunicação social liberais que restam na Rússia foram obrigados a recorrer a jornalistas e comentadores de esquerda.
Após a morte de Navalny, a oposição no exílio foi assolada por numerosos escândalos e conflitos. É claro que nem todos os membros da emigração liberal participaram nestas disputas. Por exemplo, Vladimir Kara-Murza, que tinha passado muito tempo na prisão e foi libertado em agosto de 2024 no âmbito de uma troca de prisioneiros entre a Rússia e o Ocidente, concentrou todos os seus esforços no apoio aos presos políticos que ainda se encontravam na Rússia. No entanto, a atmosfera geral no seio da comunidade de exilados pouco contribuiu para aumentar a sua credibilidade.
Em contrapartida, os ativistas que permaneceram na Rússia, juntamente com grupos no estrangeiro que mantiveram ligações com eles, fomentaram um ambiente de solidariedade e ajuda mútua. O apoio aos presos políticos tornou-se um ponto fulcral das suas atividades. As pessoas angariam fundos, enviam pacotes de cuidados e escrevem milhares de cartas para expressar a sua solidariedade para com os que estão atrás das grades. A experiência de angariação de fundos para os prisioneiros demonstrou a emergência de uma cultura auto-sustentável – uma cultura que funciona sem subvenções estrangeiras, subsídios de oligarcas ou apoio estatal.
Como conclusão inicial, podemos observar que os processos subjacentes estão a remodelar o equilíbrio de poder na sociedade. Quando a próxima primavera política começar, a paisagem revelada sob o gelo derretido será significativamente diferente da que existia antes do congelamento.
Mas será que temos razões para esperar uma primavera – ou até mesmo para a esperar para breve? Parece que sim.
A ascensão do autoritarismo na década de 2020 não foi nem acidental nem o resultado da má vontade dos veteranos dos serviços de segurança que se tinham apoderado de posições-chave no Estado. Pelo contrário, a escalada do conflito com a Ucrânia e a marcha sobre Kiev em 2022 foram em grande parte motivadas não só por tensões internacionais mas também por contradições internas. A expetativa era que uma “pequena guerra vitoriosa” consolidasse a sociedade, tal como aconteceu com a anexação da Crimeia em 2014. Mas enquanto aqueloutra vitória foi rápida e sem sangue, os acontecimentos desta vez desenrolaram-se de forma bastante diferente. A guerra não só não conseguiu resolver nenhum dos problemas existentes na Rússia, como criou novos problemas. O conflito permitiu que o governo adiasse indefinidamente reformas há muito necessárias, mas as contradições e tensões só se acumularam, incluindo no seio da elite governante.
É certo que muitos lucraram com a guerra na Ucrânia e com os contratos militares, mas os setores civis da economia sofreram. Ao mesmo tempo, a perspetiva de um acordo de paz iminente traz novos e sérios desafios. A economia russa não entrou em colapso devido às sanções e até regista um crescimento notável, mas tornou-se cada vez mais contraditória. A redução dos laços com o Ocidente não conduziu a uma reorientação consistente para os parceiros comerciais dos BRICS [Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul]. Isto tornou-se especialmente evidente quando a China e a Índia reduziram as compras de petróleo russo – sublinhando o facto de que, para além das exportações de matérias-primas, as empresas russas têm pouco a oferecer aos mercados globais.
Entretanto, os setores socialmente significativos estão a encolher rapidamente e as despesas militares tornaram-se o principal motor do crescimento económico. No entanto, manter este nível de despesas com a defesa após um cessar-fogo será difícil – não só em termos financeiros, mas também em termos políticos. A luta contra a inflação tem-se baseado no aumento da taxa de juro de referência do banco central, tornando o crédito inacessível a grande parte do setor empresarial e sufocando a procura não militar. É cada vez mais claro que uma transição para um desenvolvimento pacífico exigirá uma enorme redistribuição de recursos e uma mudança de prioridades e abordagens, o que é impossível sem uma transformação radical dos processos de tomada de decisão – o que significa que a mudança política é inevitável.
Mesmo uma parte significativa da elite dominante está a começar a compreender esta realidade. A maioria da sociedade e da classe dominante pode sonhar em regressar aos dias “felizes” de 2019, mas, infelizmente, isso é impossível – devido à mudança do cenário geopolítico na era Trump, aos desafios económicos e ao profundo cansaço que se acumulou em todas as camadas da sociedade após o “longo domínio” de Putin. No seu conjunto, estes fatores tornam a mudança não só necessária como inevitável.
Embora os acordos de paz possam reduzir as tensões globais, não resolvem os problemas internos da Rússia; pelo contrário, agravam-nos (uma das razões pelas quais o próprio processo de paz está tão repleto de dificuldades). A mudança está a chegar – a única questão é saber quais os interesses que a vão moldar e em que princípios serão formuladas as novas prioridades.
As contradições sociais e económicas exigem soluções políticas. A campanha repressiva de 2020-24 apenas conseguiu congelar temporariamente a situação, mas, ao fazê-lo, criou também novas condições que irão inevitavelmente influenciar os desenvolvimentos futuros. Como observou o conhecido blogger de esquerda Konstantin Syomin em 2023, os requerimentos para a participação na vida política são agora apresentados através do sistema penitenciário. Nem os exilados liberais nem os atuais burocratas serão capazes de formular novas ideias para o desenvolvimento do país – ambos permanecem presos ao passado.
Se a mudança começar, a própria sociedade apresentará novos líderes. Alguns deles estão atualmente sentados nas trincheiras na Ucrânia, outros trabalham para apoiar iniciativas locais ou preservar os restos de meios de comunicação social independentes. Os presos políticos de hoje podem encontrar-se na linha da frente dos esforços para construir novas instituições sociais e limpar os estábulos de Augias dos problemas acumulados. Estão preparados para trabalhar no sentido de transformar o seu país e o mundo.
Mas, para já, precisam de apoio e solidariedade acima de tudo. A partir daí, os acontecimentos seguirão o seu curso natural.
A forma como isso acontece é bem conhecida na história russa.
18 de fevereiro de 2025. Publicado originalmente no Links. Traduzido do russo para o inglês por Dmitry Pozhidaev. Traduzido para português por Carlos Carujo para o Esquerda.net.