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A concepção marxista do Estado

por Ernest Mandel
Discurso proferido no funeral de Pierre Frank, em 1984.

Neste texto publicado pela Documents socialistes em 1965, Ernest Mandel resume a visão herdada de Marx sobre o Estado como um corpo separado da sociedade, ao serviço da classe dominante, e os elementos da concepção socialista. O documento necessita atualização, nomeadamente no que diz respeito à dimensão ecológica, mas mantém a sua relevância nas concepções gerais.

Primeira parte – Origem e desenvolvimento do Estado na história das sociedades

a) A sociedade primitiva e as origens do Estado

O Estado nem sempre existiu. Alguns sociólogos e outros representantes da ciência política acadêmica cometem um erro quando falam do Estado nas sociedades primitivas. Na realidade, eles identificam o Estado com a coletividade, com a comunidade. Com isso, eles retiram do Estado suas características particulares: o exercício de certas funções é retirado da coletividade como um todo para ser reservado inteiramente a uma pequena fração dos membros dessa coletividade.

Em outras palavras, o surgimento do Estado é um produto da divisão social do trabalho. Enquanto essa divisão social do trabalho é rudimentar, todos os membros da sociedade exercem, por vez, praticamente todas as funções. Não há Estado. Não há funções específicas do Estado.

Sobre a tribo dos bosquímanos, o RP Victor Ellenberger escreve que ela não conhecia propriedade privada, tribunais, autoridade central ou órgãos especiais de qualquer tipo1. Outro autor escreve sobre essa mesma tribo: “Entre os bosquímanos, a verdadeira autoridade é representada pelo clã e não pela tribo como um todo: os assuntos do clã, em geral, são resolvidos pelos caçadores habilidosos ou pelos homens mais velhos, pessoas com mais experiência na maioria das vezes2.

A mesma constatação se aplica aos povos do Egito e da Mesopotâmia, na Alta Antiguidade: “Tal como para um agrupamento político verdadeiramente centralizado, ainda não chegou o fim dos tempos para uma família patriarcal com autoridade paterna... Os sujeitos ativos e passivos das obrigações são coletivos no regime do clã totêmico. O poder e a responsabilidade ainda têm um caráter indivisível. Estamos diante de uma sociedade comunitária e igualitária, na qual a participação no mesmo totem, que constitui a essência de cada um e a coesão de todos, coloca todos os membros do clã no mesmo nível3.

Mas, à medida que se desenvolve a divisão social do trabalho e a sociedade se divide em classes, surge o Estado e sua natureza se torna mais precisa: todos os membros da comunidade são privados do exercício de um certo número de funções; uma pequena minoria detém, sozinha, o exercício dessas funções.

Dois exemplos ilustram essa evolução, que consiste em retirar da maioria dos membros da sociedade certas funções que eles exerciam anteriormente, e originalmente de forma coletiva, para atribuí-las a um pequeno grupo de indivíduos.

Primeiro exemplo: o armamento

É uma função importante. Engels dizia que o Estado, em última análise, nada mais é do que um grupo de homens armados. Na comunidade primitiva, todos os membros masculinos do grupo estão armados (e, às vezes, até mesmo todos os adultos). Em uma sociedade assim, não se trata de conceber o armamento como um privilégio particular de “algo” chamado exército, polícia ou forças armadas. Todos os homens que atingiram a idade adulta têm o direito de portar armas. (Em algumas sociedades primitivas, a cerimônia de iniciação, que reconhece a idade adulta, confere esse direito de portar armas.)

O fenômeno é idêntico em sociedades ainda primitivas, mas já próximas do estágio de divisão em classes. É o caso, por exemplo, das populações germânicas que irão lançar-se ao assalto do Império Romano: todos os homens livres têm o direito de portar armas e podem usá-las para defender a sua pessoa e os seus direitos. A igualdade de direitos entre homens livres que vemos nas sociedades germânicas primitivas é, na verdade, uma igualdade entre soldados, muito bem ilustrada pela anedota do vaso de Soissons4. Na Grécia e na Roma antigas, as lutas entre patrícios e plebeus tinham frequentemente como objeto esta questão do direito de portar armas.

Segundo exemplo: a justiça

A sociedade primitiva geralmente desconhece a escrita e não possui um direito escrito. Mas, além disso, o exercício da justiça não é prerrogativa de indivíduos particulares; esse direito é exercido pela coletividade. Além das disputas que são decididas pelas famílias ou pelos próprios indivíduos, apenas as assembleias coletivas têm o poder de julgar. Na sociedade germânica primitiva, o presidente do tribunal popular não julga; sua função consiste em fazer respeitar certas regras, certas formas.

A ideia de que possa haver homens separados da coletividade, a quem seria reservado o direito de julgar, pareceria aos cidadãos de uma sociedade baseada no coletivismo do clã ou da tribo um absurdo tão grande quanto o inverso parece para a maioria de nós.

Resumindo: em um determinado momento do desenvolvimento da sociedade, antes de ela se dividir em classes sociais, certas funções, como o direito de portar armas ou de fazer justiça, são exercidas coletivamente por todos os membros adultos da comunidade. É somente com o desenvolvimento posterior dessa sociedade, no momento em que surgem as classes sociais, que essas funções são retiradas da coletividade para serem reservadas a uma minoria que as exerce de maneira particular. Como caracterizar essa maneira particular?

Examinemos, por exemplo, nossa sociedade ocidental, na época em que o sistema feudal começa a ser sua característica dominante. A independência, não formal, jurídica, mas efetiva e quase total, dos grandes domínios expressa-se pelo fato de que o senhor exerce sozinho em seu domínio todas as funções enumeradas acima e que eram atribuídas à coletividade adulta nas sociedades primitivas.

Este senhor feudal é o dono absoluto do seu domínio; ele é o único que tem o direito de portar armas permanentemente; ele é o único policial, o único gendarme; ele é o único juiz; ele é o único que tem o direito de cunhar moeda; ele é o único ministro das finanças. Ele exerce no seu domínio as mesmas funções clássicas que um Estado como o conhecemos hoje.

Então, uma evolução ocorre. Enquanto o domínio permanece pequeno, sua população é reduzida, as funções “estatais” do senhor permanecem muito rudimentares e pouco complexas, e enquanto seu exercício lhe toma pouco tempo, ele pode se satisfazer com essa situação e exercer pessoalmente todas essas funções.

Mas quando o domínio se amplia e o movimento demográfico se intensifica, as funções do senhor tornam-se cada vez mais complexas e mais tediosas. Torna-se impossível para um único homem exercer todas essas funções. O que faz então o senhor feudal? Ele delega parcialmente seus poderes a outros homens. Mas não a outros homens livres; estes fazem parte de uma classe social que se opõe à classe senhorial. O senhor delega partes do seu poder a pessoas que tem inteiramente sob o seu controle: servos que fazem parte dos seus servos domésticos (a origem servil encontra-se em todos os títulos: o ministro é o servo ministrário; o condestável é o comes stabuli, o chefe das cavalariças; o marechal é o servo que cuida das equipes, dos cavalos, etc.). É na medida em que essas pessoas, esses não livres, esses servos, estão inteiramente sob seu controle, que o senhor delega parcialmente seus poderes a eles.

Este exemplo nos leva à conclusão que é a base da teoria marxista do Estado: o Estado é um órgão particular que surgiu em um determinado momento da evolução histórica da humanidade e que está condenado a desaparecer no decorrer dessa mesma evolução. Ele nasceu da divisão da sociedade em classes e desaparecerá ao mesmo tempo que essa divisão. Ele nasceu como um instrumento nas mãos da classe possuidora para manter seu domínio sobre a sociedade e desaparecerá com o domínio dessa classe.

Voltando à sociedade feudal, é importante ressaltar que as funções do Estado exercidas pela classe dominante não dizem respeito apenas à esfera mais imediata do poder (exército, justiça, finanças...). A ideologia, o direito, a filosofia, as ciências, as artes... também estão sob o domínio do senhor. Aqueles que exercem essas funções são pessoas pobres que, para subsistir, precisam vender suas capacidades a um senhor que pode prover suas necessidades. (É preciso incluir os chefes da Igreja na classe dos senhores feudais, na medida em que a Igreja era proprietária de imensos domínios.)

Além disso, pelo menos quando a dependência é total, o desenvolvimento da ideologia é inteiramente controlado pela classe dominante: só ela comanda a produção “ideológica”; só ela é capaz de prover as necessidades dos “ideólogos”.

Essas são as relações básicas que devemos ter sempre em mente, se não quisermos nos perder em um emaranhado de complicações e nuances. É claro que, ao longo da evolução da sociedade, a função do Estado se torna muito mais complexa, muito mais matizada do que em um regime feudal como o que acabamos de explicar de forma muito esquemática.

No entanto, é a partir dessa condição transparente que devemos partir para compreender a lógica da evolução, a origem dessa divisão social do trabalho que se opera e o processo através do qual essas diferentes funções se tornam cada vez mais autônomas e começam a aparecer como cada vez mais independentes em relação à classe dominante.

b) O Estado burguês moderno: Origem burguesa do Estado moderno

Aqui também as condições são bastante transparentes. O parlamentarismo moderno tem sua origem em um grito de guerra lançado pela burguesia inglesa ao monarca: “No taxation without representation”, o que significa, de forma muito crua: “Não terão nosso dinheiro enquanto não tivermos o direito de decidir e controlar seus gastos”.

Notemos imediatamente que isso não é muito mais sutil do que a relação entre o senhor feudal e o servo responsável pelos estábulos. E um rei da Inglaterra, Carlos Stuart, morreu na guilhotina por não ter seguido essa lei que se tornou a regra de ouro à qual todos os representantes, diretos ou indiretos, do aparato estatal tiveram que se submeter, desde o surgimento da sociedade burguesa moderna5.

O Estado burguês, Estado de uma classe

Esta nova sociedade não é mais dominada pelos senhores feudais, mas pelo capitalismo, pelos burgueses modernos. Como se sabe, o Estado moderno, o novo poder central, monarquia mais ou menos absoluta, tem, desde os séculos XV e XVI, precisa de cada vez mais dinheiro. É o dinheiro dos capitalistas, dos banqueiros, dos empresários e dos comerciantes que enche em grande parte os cofres do Estado. A partir de então, na medida em que os capitalistas pagam ao Estado, eles vão exigir que este se coloque à sua total disposição. Eles deixavam isso bem claro através da própria natureza das leis que aprovavam e das instituições que criavam.

Algumas instituições que hoje parecem de natureza totalmente democrática, por exemplo, a instituição parlamentar, revelam de forma evidente essa natureza de classe do Estado burguês. Assim, na maioria dos países onde o parlamentarismo se instaurou, apenas os burgueses tinham direito ao voto. Esse estado de coisas durou até o final do século passado. O sufrágio universal é, como se vê, uma invenção relativamente recente na história do capitalismo. Como explicar isso?

Facilmente. Quando, no século XVII, os burgueses ingleses proclamaram: “no taxation without representation” (sem representação não há tributação), eles se referiam exclusivamente à representação da burguesia. Pois a ideia de que pessoas que não possuem nada e não pagam impostos possam votar lhes parecia absurda e ridícula: o objetivo do Parlamento não é, precisamente, controlar os gastos feitos com o dinheiro dos contribuintes?

Este argumento, extremamente válido do ponto de vista da burguesia, foi retomado e desenvolvido pela nossa burguesia doutrinária na época da reivindicação do sufrágio universal. Para essa burguesia, o papel do Parlamento consiste em controlar os orçamentos e as despesas. E somente aqueles que pagam impostos podem exercer validamente esse controle; pois aqueles que não pagam impostos teriam uma tendência constante a aumentar as despesas, uma vez que não teriam que arcar com o peso delas.

Posteriormente, a burguesia encarou este problema de uma maneira diferente. Com o sufrágio universal, nasceu também a tributação universal, que pesa cada vez mais sobre as trabalhadoras e os trabalhadores. Por este meio, a burguesia restabelecia a “justiça” imanente do sistema...

A instituição parlamentar é um exemplo típico da ligação muito direta, muito mecânica, que existe mesmo para o Estado burguês entre o domínio da classe dominante e o exercício do poder estatal. Há outros exemplos. Assim, o júri, em matéria de justiça. Este nos parece uma instituição de caráter eminentemente democrático, sobretudo em comparação com o exercício dessa função por juízes inamovíveis, todos membros da classe dominante e sobre os quais o povo não tem qualquer influência. Mas em que meio social eram – e ainda são hoje, em grande medida – escolhidos os membros de um júri? Entre os burgueses. Havia mesmo disposições especiais, comparáveis às relativas ao sistema eleitoral censitário, para poder fazer parte de um júri (ser proprietário de uma casa, pagar um determinado montante de impostos, etc.).

Para ilustrar esta ligação muito direta entre o aparelho estatal e a classe dominante na era burguesa, podemos ainda citar a famosa lei Le Chapelier, aprovada durante a Revolução Francesa, que, sob o pretexto de estabelecer a igualdade entre todos os cidadãos, proibia tanto as associações patronais como as associações operárias. Assim, sob o pretexto de proibir as corporações patronais – quando a sociedade industrial ultrapassou o estágio corporativo – os sindicatos operários foram proibidos. Assim, os operários e operárias ficaram impotentes diante dos patrões, pois somente a organização operária permitia, em certa medida (muito limitada, aliás), contrabalançar a riqueza dos patrões.

Segunda parte – O Estado burguês: faces de uma realidade cotidiana

Através da luta do movimento operário, certas instituições do Estado burguês tornam-se ao mesmo tempo mais sutis e mais complexas. O sufrágio universal substituiu o sufrágio censitário; o serviço militar tornou-se obrigatório; todos pagam impostos. Assim, o caráter de classe do Estado torna-se um pouco menos transparente. A natureza do Estado, como instrumento da classe dominante, é menos evidente do que no tempo do regime burguês clássico, em que as relações entre os diferentes grupos que exerciam funções estatais eram tão transparentes quanto na época feudal. Portanto, a análise terá de ser um pouco mais complexa.

Estabeleçamos primeiro uma hierarquia entre as diferentes funções do Estado.

Hoje em dia, ninguém, exceto os mais ingênuos, acredita que é realmente o Parlamento que governa, que é o dono do Estado baseado no sufrágio universal (note-se, porém, que essa ilusão é mais difundida onde o Parlamento é uma instituição relativamente recente).

O poder do Estado é um poder permanente. Esse poder é exercido por um certo número de instituições isoladas e autónomas da influência tão mutável do sufrágio universal. São esses órgãos que devem ser examinados para descobrir onde está o verdadeiro poder. “Os governos vêm e vão, mas a polícia e a administração permanecem.”

O Estado é, acima de tudo, estas instituições permanentes: o exército (a parte permanente do exército: estado-maior, tropas especiais...), a polícia, a gendarmerie, a administração, os ministérios, a Segurança do Estado, os juízes, etc., tudo o que está «libertado» da influência do sufrágio universal.

Este poder executivo reforça-se constantemente. À medida que surge o sufrágio universal e se desenvolve uma relativa democratização – aliás, totalmente formal – de certas instituições, verifica-se uma transferência do poder real dessas instituições para outras que estão cada vez mais subtraídas à influência do Parlamento.

Se uma série de direitos passa do rei e de seus funcionários para o Parlamento, durante a fase ascendente do parlamentarismo, pelo contrário, com o declínio deste, que começa com a conquista do sufrágio universal, uma série contínua de direitos escapa ao Parlamento e é retomada pelas administrações permanentes e inamovíveis do Estado. Este fenômeno é geral, em toda a Europa Ocidental. A Vª República Francesa é atualmente o exemplo mais marcante e completo desse fenômeno.

Devemos ver nessa reviravolta uma conspiração diabólica dos burgueses malvados contra o sufrágio universal? Trata-se de uma realidade objetiva muito mais profunda: os poderes reais são transferidos do legislativo para o executivo, o poder executivo se fortalece de forma permanente e ininterrupta, devido a transformações que também ocorrem dentro da própria classe burguesa.

Esse processo começou logo após a Primeira Guerra Mundial na maioria dos países beligerantes e continuou desde então sem interrupção. Mas o fenômeno existe, às vezes, muito antes. Assim, no Império Alemão, essa precedência do executivo sobre o legislativo surgiu no mesmo dia em que o sufrágio universal. Bismarck e os Junkers concederam o sufrágio universal para poderem usar, em certa medida, a classe operária como massa de manobra contra a burguesia liberal e garantir assim, nessa sociedade já essencialmente capitalista, a relativa independência do poder executivo, exercido pela nobreza prussiana.

Este processo mostra bem que a igualdade política é apenas aparente e que o direito do cidadão-eleitor não é mais do que o direito de colocar um pequeno papel na urna a cada quatro anos. Não vai mais longe e, sobretudo, não chega aos verdadeiros centros de decisão e de poder.

Os monopólios tomam o lugar do Parlamento

A época clássica do parlamentarismo é a da livre concorrência. Nessa época, o burguês individual, o industrial, o banqueiro, é muito forte individualmente. É muito independente, muito livre dentro dos limites da liberdade burguesa, e pode arriscar seu capital no mercado como bem entender. Nessa sociedade burguesa atomizada, o Parlamento desempenha um papel objetivo muito útil, indispensável mesmo para o bom funcionamento cotidiano dos negócios.

De fato, é somente no Parlamento que se pode determinar o denominador comum dos interesses da burguesia. Existem dezenas de grupos burgueses separados, opostos por uma infinidade de interesses setoriais, regionais e corporativos. Esses grupos não se encontram em nenhum lugar de forma articulada, a não ser no Parlamento (eles se encontram nos mercados, mas lá é com facas!). É apenas no Parlamento que se pode traçar uma linha mediana que seja a expressão do interesse de toda a classe burguesa. Pois essa era então a função do Parlamento: servir de ponto de encontro comum onde se formulava o interesse coletivo da burguesia.

Lembremos que, na época heroica do parlamentarismo, esse interesse coletivo não se expressava apenas com palavras e votos, mas também com punhais e pistolas. Quantos, a quem faltavam apenas alguns votos, a Convenção – esse governo burguês clássico – não enviou para a guilhotina? Mas a sociedade capitalista não vai permanecer atomizada.

Aos poucos, vemos a organizar-se e estruturar-se de forma cada vez mais concentrada, cada vez mais centralizada. A livre concorrência desaparece; é substituída por monopólios, trustes e outros agrupamentos patronais.

Uma centralização do poder capitalista surge fora do Parlamento. É a verdadeira centralização do capital financeiro, dos grandes bancos e grupos financeiros, que se organiza. Se “a Analítica”6 do Parlamento expressava a vontade da burguesia belga há um século, hoje é sobretudo o relatório anual da Société Générale, ou o da Brufina, que prepara a assembleia geral dos acionistas dessas empresas, que é preciso estudar para conhecer a opinião real dos capitalistas. É aí que se expressa a convicção dos burgueses que contam, ou seja, a dos grandes grupos financeiros que dominam a vida do país.

Assim, o poder capitalista concentrou-se fora do Parlamento e das instituições eleitas pelo sufrágio universal. Diante de uma concentração tão acentuada (lembremos que, na Bélgica, uma dezena de grupos financeiros controlam a vida econômica da nação), a relação entre o Parlamento, os funcionários públicos, os comissários de polícia... e essas pessoas que ganham bilhões é uma relação que pouco se preocupa com a teoria. É uma ligação imediata e prática: ela se dá através do pagamento.

As correntes de ouro visíveis da burguesia e as dívidas do Estado

O Parlamento, e mais ainda o governo de um Estado capitalista, por mais democrático que seja na aparência, está ligado por correntes de ouro à burguesia. Estas correntes de ouro têm um nome: a dívida pública. Nenhum governo poderia durar mais de um mês sem ter de bater à porta dos bancos para poder pagar as suas despesas correntes. Em caso de recusa dos bancos, o governo entra em falência. As origens deste fenómeno são duplas. Os impostos não entram todos os dias; as receitas concentram-se numa época do ano, enquanto as despesas são contínuas.

É daí que vem a dívida pública de curto prazo. Poderíamos resolver esse problema, poderíamos imaginar uma “articulação técnica”, mas há outro problema, muito mais importante. Todos os Estados capitalistas modernos gastam mais do que recebem, e é para essa dívida pública que os bancos e outras instituições financeiras podem mais facilmente adiantar o dinheiro. Existe aí, para o Estado, uma relação de dependência direta e imediata, diária, em relação ao grande capital.

A hierarquia no aparato estatal

Outras correntes de ouro, invisíveis, fazem do aparato estatal um instrumento nas mãos da burguesia. Se examinarmos, por exemplo, o modo de recrutamento dos funcionários públicos, constatamos que, para se tornar aprendiz subclérigo num ministério, é necessário passar num exame. A regra parece muito democrática.

Por outro lado, nem qualquer pessoa pode se apresentar a qualquer exame, para qualquer nível. O exame para acessar o cargo de secretário-geral de um ministério ou chefe do estado-maior do exército não é o mesmo que para se tornar aprendiz subsecretário em uma pequena administração. Isso também parece normal, à primeira vista.

Mas há uma progressão nesses exames que lhes confere um caráter seletivo. É preciso possuir certos diplomas, ter feito certos estudos para poder se candidatar a certos cargos, especialmente cargos de direção. Esse sistema exclui muitas pessoas que não puderam fazer um ensino universitário ou equivalente, pois a democratização dos estudos ainda não se concretizou na prática. Se o sistema de exames é aparentemente igualitário, ele também é um instrumento de seleção.

...espelho da hierarquia na sociedade capitalista

Essas correntes de ouro invisíveis também se encontram nas remunerações dos membros do aparato estatal. Todas as administrações, incluindo o exército, desenvolvem esse aspecto piramidal, hierárquico, que caracteriza a sociedade burguesa. Estamos tão influenciados, tão impregnados pela ideologia da classe dominante, que aprovamos que um secretário-geral de um ministério tenha uma remuneração dez vezes superior à de um estagiário do mesmo ministério ou à da empregada doméstica que limpa os escritórios. O esforço físico dessa empregada doméstica é certamente muito maior, mas o secretário-geral do ministério, ele, “pensa”, o que, como todos sabem, é muito mais cansativo. Da mesma forma, o salário do chefe do Estado-Maior (mais um que “pensa”!) é muito mais elevado do que o atribuído ao soldado de segunda classe.

Essa estrutura hierárquica do aparato estatal nos leva a destacar o seguinte: nela encontramos secretários-gerais, generais, bispos, etc., que estão no mesmo nível de remuneração e, portanto, no mesmo nível de vida, o que os inclui no mesmo clima social e ideológico da grande burguesia. Depois vêm os funcionários médios, os oficiais médios, que se encontram nas condições sociais e ganham rendimentos que são os da pequena e média burguesia. E, finalmente, a massa dos pequenos empregados, dos sem-grau, das empregadas domésticas, dos operários e operárias municipais, que muitas vezes ganham menos do que os operários e operárias fabris. O seu nível de vida corresponde claramente ao do proletariado.

O aparato estatal não é um instrumento homogêneo. Ele possui uma estrutura que corresponde de maneira bastante clara à estrutura da sociedade burguesa, com uma hierarquia de classes e diferenças idênticas. Essa estrutura piramidal corresponde a uma necessidade real da burguesia. Ela quer ter em suas mãos um instrumento que possa manipular à sua vontade. É fácil compreender que a burguesia tenha tentado durante muito tempo, e com obstinação, proibir o direito à greve aos trabalhadores dos serviços públicos.

O Estado... um supervisor!

Este argumento é importante. Existe na própria concepção do Estado burguês – independentemente da sua forma mais ou menos “democrática” – um ponto fundamental, aliás ligado à própria origem do Estado: pela sua natureza, o Estado permanece hostil, ou melhor, inadequado às necessidades da coletividade. O Estado é, por definição, um grupo de homens que exercem funções que, originalmente, eram exercidas por todos os membros da coletividade. Esses homens não realizam nenhum trabalho produtivo, mas são mantidos pelos outros membros da sociedade.

Em tempos normais, não precisamos muito de supervisores. Assim, em Moscou, nos ônibus, não há ninguém que exerça a função de cobrador7; os usuários depositam seus kopecks ao entrar, sem que ninguém os supervisione. Em sociedades onde o nível de desenvolvimento das forças produtivas é baixo, onde a luta de todos contra todos é intensa para se apropriar de uma renda social insuficiente para satisfazer a todos, é necessário um aparato de vigilância importante. Assim, durante a Ocupação, proliferaram inúmeros serviços de vigilância especializados (polícias nas estações, vigilância das gráficas, do racionamento, etc.).

Nessa época, a superfície de conflito é tal que um aparato de vigilância imponente se torna indispensável. Se refletirmos sobre o problema, vemos que todos aqueles que exercem funções estatais, que fazem parte do aparato estatal, são, de uma forma ou de outra, vigilantes. Os gendarmes e os policiais são vigilantes, mas também os controladores de impostos, os juízes, os burocratas dos ministérios, os cobradores de ônibus, etc. Em última análise, todas as funções do aparato estatal se reduzem a isso: vigiar, controlar a vida social no interesse da classe dominante.

Costuma-se dizer que o Estado contemporâneo desempenha um papel de árbitro; poderíamos relacionar essa afirmação com a que acabamos de fazer: “vigiar” e “arbitrar”, não são, no fundo, a mesma coisa?

Duas observações se impõem. Em primeiro lugar, o árbitro não é neutro. Como explicamos acima, os altos escalões do aparato estatal estão profundamente integrados à grande burguesia. Em segundo lugar, a arbitragem não se dá no vácuo: ela se dá no âmbito da manutenção da sociedade de classes existente. É certo que os “árbitros” podem fazer concessões aos explorados; isso depende essencialmente das relações de força. Mas o objetivo essencial da arbitragem é manter a exploração capitalista como tal, se necessário cedendo em questões secundárias.

O Estado-vigilante, testemunha da pobreza da sociedade

O Estado é um órgão secretado pela sociedade para vigiar o funcionamento cotidiano da vida social e que está a serviço da classe dominante para manter a dominação dessa classe. Há uma necessidade objetiva desse órgão de vigilância, necessidade essa intimamente ligada ao grau de pobreza e à massa de conflitos sociais que existem na sociedade.

De uma forma mais geral, historicamente, o exercício das funções do Estado está intimamente ligado à existência de conflitos sociais, que, por sua vez, estão intimamente ligados à existência de uma certa escassez de bens materiais, de riquezas, de recursos. Meios próprios para satisfazer as necessidades humanas. É preciso sublinhar este facto: enquanto existir o Estado, será uma demonstração de que os conflitos sociais (e, portanto, também a relativa escassez de bens e serviços) persistem. Com os conflitos sociais, desaparecerão também os supervisores, que se tornarão inúteis e parasitas, mas não antes! A sociedade, de fato, paga a esses homens para exercer funções de vigilância, enquanto uma parte da sociedade tiver interesse nisso. Mas é bastante evidente que, a partir do momento em que nenhum grupo da sociedade tiver mais interesse no exercício de funções de vigilância, a função desaparecerá, juntamente com sua utilidade. Ao mesmo tempo, desaparecerá o Estado.

O simples fato da sobrevivência do Estado prova que ainda existem conflitos sociais, que ainda existe essa relativa escassez de bens, que marca esse vasto período da história humana que se insere entre o estado de pobreza absoluta, que é a situação do comunismo clânico ou tribal, e a situação de abundância que será a da sociedade socialista. Enquanto estivermos nesta fase de transição que abrange dez mil anos da história humana, fase que também engloba a sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo, o Estado sobreviverá, os conflitos sociais subsistirão e serão necessárias pessoas para arbitrar esses conflitos no interesse da classe dominante.

Se o Estado burguês continua sendo fundamentalmente um instrumento a serviço das classes dominantes, isso significa que os trabalhadores e as trabalhadoras devem ser indiferentes à forma particular que esse Estado assume – democracia parlamentar, ditadura militar, ditadura fascista? Evidentemente que não! Quanto mais os trabalhadores e trabalhadoras gozam de liberdades para se organizar e defender suas ideias, mais nascem na sociedade burguesa os germes da futura democracia socialista e mais a chegada do socialismo é historicamente facilitada. É por isso que os trabalhadores devem defender suas liberdades democráticas contra qualquer tentativa de limitá-las (leis antigreves, Estado forte) ou esmagá-las (fascismo).

Terceira parte – O proletariado no poder

O que precede leva a responder a algumas perguntas que se colocam sobre o Estado e o socialismo.

A classe operária precisa de um Estado?

Quando se diz que o Estado subsiste, inclusive na sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo, surge a questão de saber se a classe operária, quando toma o poder, ainda precisa de um Estado. Não poderia ela, de um dia para o outro, assim que toma o poder, abolir esse Estado? A resposta a essa pergunta já foi dada. É claro que, no papel, a classe trabalhadora pode abolir o Estado. Mas eis o problema: trata-se então de um ato puramente formal, jurídico, na medida em que a tomada do poder pela classe trabalhadora não se efetiva: isso nunca aconteceu no passado e é pouco provável que isso venha a acontecer numa sociedade que já é tão rica, que já goza de tal abundância de bens e serviços materiais, que os conflitos sociais propriamente ditos, ou seja, aqueles que giram em torno da distribuição desses produtos, tenham desaparecido. E que a necessidade de árbitros, supervisores, policiais para controlar todo esse caos tenha desaparecido junto com a relativa escassez de bens.

Na medida em que a classe trabalhadora toma o poder em um país que ainda vive uma semi-escassez de bens, onde ainda existe uma certa miséria, ela toma o poder num momento em que a sociedade ainda não pode funcionar sem Estado. Uma massa de conflitos sociais ainda persiste.

Sempre se pode recorrer a uma atitude hipócrita, como fazem alguns anarquistas: abolamos o Estado e chamemos de outro nome as pessoas que exercem as funções do Estado. Mas isso é uma operação puramente verbal, uma “abolição” do Estado no papel.

Enquanto os conflitos sociais persistirem, serão necessárias pessoas que, na realidade, resolvam esses conflitos. Ora, pessoas que resolvem conflitos são o Estado. É impossível que a humanidade coletiva possa resolvê-los em um estado de desigualdade real e incapacidade real de satisfazer as necessidades de cada um.

Igualdade na miséria                                                                                                  

A isso, pode-se levantar uma objeção, embora um pouco absurda, que ninguém mais apresenta hoje. É possível conceber uma sociedade em que a abolição do Estado estaria ligada à redução das necessidades humanas; em tal sociedade, poderia ser estabelecida uma igualdade perfeita, que não seria senão igualdade na miséria. Assim, supondo que a classe operária tomasse o poder amanhã na Bélgica, poderíamos dar pão a todos e todas e até um pouco mais.

Mas é impossível negar artificialmente as necessidades humanas produzidas pelo desenvolvimento da produção e que surgiram pelo fato de nossa sociedade ter atingido um certo estágio de desenvolvimento. Quando, para toda uma série de bens e serviços, a produção não é suficiente para cobrir as necessidades de todos e todas, a proibição dessas produções será sempre ineficaz. Nesse caso, apenas se criam condições ideais para um mercado paralelo e para a produção clandestina desses produtos, quando o objetivo é simplesmente proibir toda uma gama de produtos.

Assim, todas as seitas comunistas que, durante a Idade Média e os tempos modernos, quiseram organizar imediatamente a sociedade comunista perfeita, baseada na igualdade perfeita de seus membros, proibiram a produção de luxo, de conforto – incluindo, aliás, a impressão.

Todas essas experiências fracassaram porque o homem é assim: a partir do momento em que toma consciência de certas necessidades, não é possível reprimi-las artificialmente. Savonarola8, pregando o arrependimento e a abstinência, podia fulminar para que se queimassem todos os quadros, produtos de luxo; mas não poderia impedir que algum incorrigível, apaixonado pela beleza, pintasse às escondidas. O problema da distribuição desses produtos “clandestinos”, muito mais raros do que anteriormente, sempre se colocaria, inevitavelmente.

O desafio do proletariado

Ao que foi exposto no início deste capítulo, é preciso acrescentar outra razão, embora menos importante. Quando o proletariado chega ao poder, ele o faz em condições muito particulares, diferentes da tomada do poder por qualquer outra classe social antes dele.

Ao longo da história, todas as outras classes sociais, quando tomaram o poder do Estado, já detinham em suas mãos o poder efetivo, econômico, intelectual e moral na sociedade. Não há um único exemplo, antes do proletariado, de uma classe social que tenha tomado o poder enquanto ainda era oprimida do ponto de vista econômico, intelectual e moral.

Em outras palavras, é quase um desafio imaginar que o proletariado possa tomar o poder, porque, coletivamente, como classe, no sistema capitalista, esse proletariado está degradado. Pois não se pode desenvolver plenamente as capacidades intelectuais e morais quando se trabalha oito, nove e dez horas em uma oficina, uma fábrica, um escritório. E tal é a condição proletária.

Portanto, o poder da classe operária, quando chega ao poder, é muito vulnerável. Em todos esses planos, é preciso defender o poder da classe operária contra uma minoria que continuará, durante todo um período histórico de transição, a gozar de enormes vantagens intelectuais e materiais, pelo menos em termos de reservas de bens de consumo, em relação à classe operária.

Uma revolução socialista normal expropria a grande burguesia como detentora dos meios de produção; mas não despoja os burgueses detentores de reservas de bens ou de diplomas, muito menos como proprietários de cérebros e conhecimentos que, durante todo o período anterior à tomada do poder pela classe operária, detinham um privilégio quase exclusivo nesse domínio.

Assim, na sociedade onde o proletariado detém há pouco tempo o poder (o poder político, o dos homens armados), uma série de alavancas do poder real estão e permanecem nas mãos da burguesia. Mais exatamente, nas mãos de uma parte da burguesia, que podemos chamar de intelectualidade ou burguesia intelectual e técnica (tecnocrática).

Poder operário e técnicos burgueses

Lenin teve experiências amargas a este respeito. De facto, verifica-se que, independentemente da forma como se encara o problema, independentemente das leis, dos decretos, as instituições que se promulgam a esse respeito, se precisamos de professores, altos funcionários, engenheiros, técnicos de alto nível, em todos os níveis da engrenagem social, é muito difícil colocar nesses lugares proletários da noite para o dia, e mesmo cinco ou dez anos após a conquista do poder.

Lenin, durante os primeiros anos do poder soviético, armando-se com uma fórmula teoricamente correta, embora um pouco incompleta, dizia: os engenheiros trabalham hoje para a burguesia, amanhã trabalharão para o proletariado; para isso, serão pagos e, se necessário, serão obrigados. O essencial é que eles sejam controlados pelos trabalhadores e trabalhadoras. Mas alguns anos mais tarde, à beira da morte, Lenin, fazendo um balanço da experiência, perguntou-se: quem controla quem? Os especialistas são controlados pelos comunistas ou é o contrário?

Quando se estuda esse fenômeno, diariamente e concretamente, em países subdesenvolvidos, quando se vê o que isso significa na prática em um país como a Argélia – o monopólio, o privilégio do conhecimento universitário, e mesmo do conhecimento em geral, para uma minoria ínfima da sociedade, enquanto uma massa de pessoas que lutou heroicamente para conquistar primeiro a independência e depois o poder, mas que, no momento de exercê-lo, se depara com o problema do conhecimento que não possui, que só deve começar a adquirir e que, enquanto isso, devem abandonar completamente o poder àqueles que possuem o conhecimento — percebe-se bem que se trata de coisas que podem ser facilmente resolvidas com algumas fórmulas genéricas no papel, mas que o problema é bem diferente quando é preciso resolvê-lo na prática, na vida real.

A experiência mais heroica, mais radical, mais revolucionária já empreendida neste campo na história da humanidade é a da revolução cubana. Esta, tirando lições de todas as vicissitudes do passado, empreendeu resolver amplamente esse problema em um tempo mínimo, conduzindo uma campanha extraordinária de alfabetização e educação9, transformando dezenas de milhares de operários e camponeses analfabetos em educadores e educadoras, professoras e professores universitários e acadêmicos, e isso em um curto espaço de tempo. Após cinco a seis anos de esforços, os resultados obtidos são consideráveis.

No entanto, basta um único engenheiro ou um único agrônomo em um distrito onde vivem dezenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras para que, apesar do admirável impulso revolucionário que anima o povo cubano, esse especialista seja praticamente o dono do distrito, se ele detém o monopólio do conhecimento sem o qual a vida técnica não pode durar. Mais uma vez, a falsa solução seria voltar a uma simplicidade tal que se pudesse prescindir de técnicos. Isso é uma utopia reacionária.

O Estado, guardião do poder operário

Todas essas dificuldades implicam a necessidade de o proletariado, nova classe dominante, exercer o poder de Estado contra todos aqueles que podem arrancar-lhe o poder, seja aos pedaços, seja de uma só vez, nesta sociedade nova e transitória em que possui o poder político e as principais alavancas do poder econômico, mas onde continua freado por toda uma série de fraquezas e inimigos que acabamos de mencionar. Daí decorre a obrigação da classe operária de manter um Estado após sua conquista do poder e a impossibilidade de suprimir esse Estado da noite para o dia. Mas esse Estado operário deve ser de natureza muito particular.

Natureza e características do Estado proletário

A classe operária, por sua situação particular na sociedade, tal como acabamos de descrever, é obrigada a manter um Estado. Mas, para manter seu poder, ela deve manter um Estado radicalmente diferente daquele que, no passado, manteve o poder da burguesia, de uma classe feudal ou escravocrata. O Estado proletário é ao mesmo tempo um Estado e não é mais um Estado; ele se torna cada vez menos um Estado, é um Estado que começa a decair no momento mesmo em que começa a nascer, como diziam Karl Marx e Lenin. Marx, desenvolvendo a teoria do Estado proletário, Estado que definha, atribuiu-lhe várias características, cuja ilustração se encontrava na Comuna de Paris de 1871. Há três características essenciais:

• Não há separação nítida entre os poderes executivo e legislativo: são necessários órgãos que ao mesmo tempo legislam e aplicam as leis. Em suma, é preciso voltar ao Estado tal como ele surgiu do comunismo do clã e da tribo, tal como ainda se encontra na antiga assembleia popular ateniense.

Isso é importante. É a melhor maneira de reduzir ao máximo a divisão entre o poder real, cada vez mais concentrado nas mãos de órgãos permanentes, e o poder cada vez mais fictício que é deixado às assembleias deliberativas. Essa divisão é própria do parlamentarismo burguês. Não basta substituir uma assembleia deliberativa por outra se nada essencial for mudado nessa divisão. As assembleias deliberativas devem ter um poder executivo real.

• Elegibilidade máxima na função pública: não são apenas os membros das assembleias deliberativas que devem ser eleitos. Os juízes, os altos funcionários, os comissários da milícia, os dirigentes do ensino, os diretores das obras públicas nos distritos territoriais também devem ser eleitos. Isso pode chocar em nossos países de tradição napoleônica ultra reacionária. Mas algumas democracias especificamente burguesas, como os Estados Unidos, a Suíça, o Canadá ou a Austrália, por exemplo, mantiveram esse caráter eleitoral para um certo número de funções públicas. Assim, nos Estados Unidos, o xerife é eleito por seus concidadãos.

No Estado proletário, essa elegibilidade geral deve ser acompanhada de uma revogabilidade geral. É necessário, portanto, que seja possível um controle permanente e muito amplo do povo sobre aqueles que exercem funções estatais; e que a separação entre aqueles que exercem o poder estatal e aqueles em nome dos quais ele é exercido seja a menor possível. É por isso que é necessário garantir uma renovação constante dos eleitos, para impedir que as pessoas ocupem funções estatais de forma permanente. As funções do Estado devem, numa escala cada vez mais ampla, ser exercidas rotativamente pela massa da população tomada coletivamente.

• Sem remuneração abusiva: nenhum funcionário público, nenhum membro de órgãos representativos e legislativos, nenhum indivíduo que exerça um poder do Estado deve receber um salário superior ao de um trabalhador qualificado. Este é o único meio válido para impedir a caça às funções do Estado como meio de chegar e viver às custas da sociedade, para eliminar os arrivistas e os parasitas que todas as sociedades passadas conheceram.

Estas três regras, tomadas em conjunto, esclarecem bem o pensamento de Marx e Lenin sobre o Estado. Este não se assemelha a nenhum dos seus antecessores, porque é o primeiro Estado que começa a definhar no momento mesmo do seu aparecimento, porque é um Estado cujo aparelho é composto por pessoas que não gozam de nenhum privilégio em relação à massa da sociedade, porque é um Estado cujas funções são cada vez mais exercidas pelo conjunto dos membros da sociedade, que se substituem progressivamente uns aos outros, porque é um Estado que não se confunde mais com um grupo de pessoas separadas da massa e exercendo funções separadas da massa, mas que, pelo contrário, se dissolve na massa do povo, da população trabalhadora, porque é um Estado que definha à medida que definham as classes sociais, os conflitos sociais, a economia monetária, a produção mercantil, as mercadorias, o dinheiro, etc.

Este definhamento do Estado deve ser concebido como a autogestão e o autogoverno dos produtores e dos trabalhadores e trabalhadoras, que se estendem cada vez mais até que, em condições de abundância material e de alto nível cultural de toda a sociedade, esta se estruture em comunidades de produtores-consumidores que se autogovernam.

E a União Soviética?

Quando se considera a história da URSS nos últimos trinta anos, a conclusão que se pode tirar sobre o Estado é simples: um Estado onde existe um exército permanente; onde há marechais, diretores de trustes e até mesmo autores de teatro ou bailarinas que ganham cinquenta vezes mais do que um operário ou uma empregada doméstica; onde se estabeleceu uma enorme seletividade para certas funções públicas, tornando praticamente impossível o acesso a essas funções para a imensa maioria da população; onde o poder real é exercido por pequenos comitês de pessoas cuja renovação se dá por vias misteriosas e cujo poder permanece inamovível e permanente durante longos períodos históricos; um Estado assim, evidentemente, não está em decadência.

Por quê?

A explicação é simples. O Estado, na União Soviética, não entrou em decadência porque os conflitos sociais não entraram em decadência. Os conflitos sociais não entraram em decadência porque o grau de desenvolvimento das forças produtivas não permitiu sua decadência, e isso porque a situação de semipenúria que caracteriza os países capitalistas, mesmo os mais avançados, continua a caracterizar a situação do Estado soviético. E enquanto persistirem essas condições de semipenúria, serão necessários controladores, supervisores, policiais.

Estes, é claro, em um Estado proletário, deveriam estar a serviço de uma causa melhor, pelo menos na medida em que defendem a economia socialista. Mas também é preciso reconhecer que eles estão separados do corpo da sociedade, que são, em grande medida, parasitas. Seu desaparecimento está diretamente ligado ao nível de desenvolvimento das forças produtivas, que só podem permitir o desaparecimento dos conflitos sociais e a supressão das funções ligadas a esses conflitos.

E na medida em que esses supervisores, esses controladores, monopolizam cada vez mais o exercício do poder político, eles podem evidentemente garantir privilégios materiais crescentes, os pedaços de escolha nessa escassez relativa que domina a distribuição: eles se constituem assim em uma burocracia privilegiada, subtraída de fato ao controle dos trabalhadores e trabalhadoras levada a defender prioritariamente seus próprios privilégios.

O argumento do cordão sanitário

A isso, quis-se objetar, invocando a ameaça10 que representava o entorno externo, capitalista e argumenta-se: enquanto existir um perigo externo, é necessário um Estado, disse Stalin, nem que seja para defender o país contra seu entorno hostil.

Este argumento baseia-se num equívoco. A única coisa que a existência de um ambiente capitalista ameaçador pode demonstrar é a necessidade de um armamento e de uma instituição militar; mas isso não justifica a existência de instituições militares separadas do corpo da sociedade.

A existência de tais instituições militares separadas do corpo da sociedade indica que, dentro dessa sociedade, subsiste um importante estado de tensão social, que impede os governantes de se permitirem o luxo de colocar armas nas mãos de todos, o que faz com que os dirigentes não ousem confiar no povo para resolver à sua maneira as questões militares de autodefesa, o que poderia realizar se a coletividade tivesse realmente esse grau de superioridade extraordinária que teria uma sociedade verdadeiramente socialista em relação à sociedade capitalista.

Na realidade, o problema do entorno externo é apenas um aspecto secundário de um fenômeno muito mais geral: o nível de desenvolvimento das forças produtivas e a maturidade econômica do país estão longe do nível que deveria ser o de uma sociedade socialista. A União Soviética permaneceu uma sociedade transitória, cujo nível de desenvolvimento das forças produtivas é comparável ao de uma sociedade capitalista. Ela deve, portanto, lutar com armas comparáveis.

Não conhecendo a supressão dos conflitos sociais, a URSS deve manter todos os órgãos de controle e vigilância da população e, por isso, mantém e até reforça o Estado, em vez de deixá-lo definhar. Isso provocou, nesta sociedade de transição e por muitas causas específicas, deformações e degenerações burocráticas que causaram um enorme prejuízo à causa do socialismo, sobretudo na medida em que se cometeu o erro de lhe colar o rótulo de “socialista”, por medo de dizer a verdade: ainda somos demasiado pobres e atrasados para poder criar uma verdadeira sociedade socialista. E, na medida em que se quis, por razões de propaganda, atribuir a todo o custo o rótulo “socialista”, é preciso depois explicar que existem purgas socialistas, campos de concentração socialistas, desemprego socialista, etc., etc.

Garantias contra a burocracia

Que garantias podem ser introduzidas para evitar no futuro a hipertrofia da burocracia, tal como surgiu na URSS na época stalinista?

Respeitar escrupulosamente as três regras acima mencionadas relativas ao início do declínio do Estado operário (e, em particular, a que limita a remuneração de todos os dirigentes econômicos e políticos).

Respeitar escrupulosamente o caráter democrático da gestão da economia: comitês de autogestão dos trabalhadores e trabalhadoras eleitos nas empresas; congressos dos produtores e produtoras (“Senado Econômico”) eleitos por esses comitês, etc. Aqueles e aquelas que controlam o excedente social controlam toda a sociedade.

Respeitar escrupulosamente o princípio de que, se o Estado operário deve necessariamente restringir o exercício das liberdades políticas para todos os inimigos de classe que se opõem à instauração do socialismo (restrição que deve ser proporcional à violência de sua resistência), ele deve, ao mesmo tempo, estender o exercício dessas mesmas liberdades a todos os trabalhadores e trabalhadoras: liberdade para todos os partidos que respeitem a legalidade socialista, liberdade de imprensa para todos os jornais que fazem o mesmo, liberdade de reunião, de associação, de manifestação sem restrições para os trabalhadores e trabalhadoras.

Respeitar o caráter democrático, contraditório e público de todas as assembleias deliberativas.

Respeitar o princípio do direito escrito.

Teoria e prática

A teoria marxista sobre o decaimento do Estado está consolidada há mais de meio século. Na Bélgica, falta-nos apenas um pequeno detalhe a cumprir: a sua realização prática.

1965

  • 1

    O fim trágico dos Bushmen, pp. 70-73; Paris, Amiot-Dumont, 1953). NDLR

  • 2

    I. Shapéra, The Khoisan Peoples of South Africa, 1930. NDLR

  • 3

    A. Moret e G. Davy, Des Clans aux Empires, Paris, La Renaissance du Livre, 1923, p. 17. NDLR

  • 4

    A anedota do vaso de Soissons relata um episódio ocorrido em 486, quando Clóvis, rei dos francos, reclamou um vaso da igreja entre os espólios após a batalha. Um soldado opôs-se violentamente e quebrou o vaso. Um ano depois, Clóvis matou esse soldado sob o pretexto de indisciplina. NDLR.

  • 5

    Sobre a revolução burguesa na Inglaterra, ver o artigo de Perry Anderson, “Les origines de la crise présente” (As origens da crise atual), publicado em Les Temps Modernes, n.º 219-220, agosto-setembro de 1964, e especialmente o capítulo “Histoire et structure de classe ; trajectoire” (História e estrutura de classe; trajetória), pp. 403-421.

  • 6

    L’Analytique é o jornal oficial das deliberações na Bélgica. N.da E.

  • 7

    O cobrador de ônibus carimbava os bilhetes.

  • 8

    Girolamo Savonarola (em italiano Girolamo Savonarola) foi um frade dominicano ascético, pregador e reformador ativo na Florença renascentista, que, de 1494 a 1498, dirigiu um regime teocrático na República de Florença. Ele é conhecido por sua defesa da destruição da arte e da cultura secular e seus apelos à renovação cristã, denunciando veementemente a corrupção do clero católico, sem questionar o dogma, o regime despótico e a exploração dos pobres. Acusado de heresia, ele foi queimado em Florença. NDLR

  • 9

    A delegação cubana que participou na Conferência sobre Educação e Desenvolvimento Económico, realizada em Santiago do Chile em março de 1962, declarou: “Basta comparar a eficácia dos métodos cubanos com os adotados pela Conferência para ver que os autores da chamada Aliança para o Progresso oferecem empréstimos de 150 milhões de dólares por ano a dezenove países, com uma população de 200 milhões de habitantes, enquanto um único país – Cuba, com 7 milhões de habitantes – aumentou seu orçamento para cultura e educação em 200 milhões de dólares por ano, sem ter que pagar juros a ninguém”. Em Cuba, somente no ano de 1961, 707 mil adultos aprenderam a ler e escrever, reduzindo a porcentagem de analfabetos para 3,9%. Cuba estabeleceu as seguintes metas para a educação no período 1961-1964: a) elevar ao nível médio de instrução primária o grau de instrução daqueles que aprenderam recentemente a ler e escrever; b) completar a instrução primária de meio milhão de trabalhadores que possuem apenas três anos de estudos elementares; c) garantir o ensino secundário básico a 40 000 trabalhadores que completaram o ensino primário. Isto foi conseguido apesar do bloqueio e das necessidades da defesa, e apesar dos ataques dos Estados Unidos.

  • 10

    Literalmente, o “cordão sanitário” ou quarentena imposto à jovem república soviética pelos Estados Unidos e seus aliados da Primeira Guerra Mundial. A União Soviética foi isolada das relações diplomáticas, comerciais e ideológicas com o resto do mundo pelo cinturão de países que a cercava e pelas marinhas aliadas que patrulhavam as rotas marítimas. Essa política, que causou enormes dificuldades na União Soviética, mas acabou fracassando, foi uma versão anterior da tentativa atual de Washington de destruir a revolução cubana por meio de um bloqueio econômico e de colocar em quarentena a “infecção” revolucionária, proibindo viagens ao país. Nota baseada em uma versão em inglês de 1969 deste texto.

المؤلف - Auteur·es

Ernest Mandel

Referências:

*La Théorie léniniste de l'organisation foi republicada com o título Lénine, la révolution, le parti. Publicado por La Brèche, € 7.

* Les étudiants, les intellectuels et la lutte des classes, publicado por La Brèche, 1979.

*Sur la Seconde guerre mondiale, publicado por La Brèche.

* Introduction au marxisme, publicado por La Brèche.

E o site ernestmandel.org