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Nossa orientação e tarefas nos movimentos sociais

por IVe Internationale
Manifestação em Madrid, na Praça Puerta del Sol, em 15 de maio de 2011. © furilo

Esta resolução foi aprovada pelo 18º Congresso Mundial por 107 votos a favor, 12 contra, 3 abstenções e 9 delegados não votaram.

1. Por que os movimentos sociais são estrategicamente importantes

Durante muitos anos, a IV  Internacional desenvolveu uma prática – e, em maior ou menor grau, uma compreensão teórica – de que os movimentos sociais, em toda a sua diversidade, podem desempenhar e muitas vezes desempenham um papel essencial na luta pelo socialismo.

Há uma multiplicidade de movimentos sociais: sindicais, movimentos de bairro, camponeses e agricultores, ecologistas, movimentos de mulheres, movimentos LGBTQIA+, movimentos indígenas, movimentos antirracistas, movimentos de pessoas com deficiência. Esses movimentos sociais muitas vezes têm várias dimensões: contra a exploração no local de trabalho, pela defesa dos espaços de vida e da própria vida, e pela libertação diante da opressão (particularmente de mulheres, pessoas LGBTIQIA+, indígenas, negras e negros e pessoas com deficiência). Nossa abordagem é apoiar essas múltiplas dimensões da luta, ampliá-las e buscar uma junção explícita dos diferentes aspectos e terrenos de luta para um confronto global com as classes dominantes, que se fundam na exploração, na opressão e na destruição dos espaços de vida e da própria vida.

Esses movimentos são importantes refletem a  a auto-organização daqueles que desafiam o sistema capitalista. O processo de auto-organização, notadamente nos locais de trabalho, mas também em outros contextos coletivos (estabelecimentos de ensino, bairros, comunidades rurais etc., ou com base em experiências comuns de opressão), estimula o desenvolvimento da consciência de classe nos enfrentamentos ao sistema capitalista – notadamente a empregadores e ao Estado – , desenvolve a politização e portanto as premissas de um programa para enfrentar o capitalismo e construir a visão de uma sociedade diferente.

Embora um partido anticapitalista tenha como objetivo desenvolver um programa de luta de classes como síntese das reivindicações no melhor interesse dos explorados e oprimidos, o desenvolvimento e a formulação dessas reivindicações surgem, afloram e se sdesenvoolvem mais bem acabadas quando vêm daqueles mais diretamente envolvidos.

Inicialmente, desenvolvemos essa compreensão no nosso trabalho no movimento de mulheres. Portanto, essa abordagem pode ser encontrada pela primeira vez em textos que foram adotados em vários congressos e corpos dirigentes da IV no tema da libertação das mulheres e nossa orientação para a construção do movimento feminista antissistêmico: Revolução Socialista e a Luta pela Libertação das Mulheres (1979), especialmente na Parte II, “A IV  Internacional e a Luta pela Libertação das Mulheres: Nossa Perspectiva”; América Latina: Dinâmica dos movimentos de massas e correntes feministas (1991), especialmente a Parte III, “Nossa orientação”; e Europa Ocidental: Mudanças nas formas da luta pela libertação das mulheres (1991).

O primeiro texto estabelece nossas diferenças tanto com aqueles da esquerda que minimizam a opressão das mulheres, considerando-as apenas como trabalhadoras assalariadas, quanto com aqueles que veem o patriarcado e as relações de classe como processos paralelos, o que hoje chamaríamos de teorias “do sistema dual”.

Como argumenta o documento em resposta aos primeiros: “Esta visão dá peso e importância às lutas das mulheres apenas na sua capacidade de trabalhadoras assalariadas no local de trabalho. Diz que as mulheres serão libertadas, de passagem, pela revolução socialista, pelo que não há necessidade especial de se organizarem como mulheres que lutam pelas suas próprias reivindicações. 

Ao rejeitar a necessidade de as mulheres se organizarem contra sua opressão, eles apenas reforçam as divisões dentro da classe trabalhadora e retardam o desenvolvimento da consciência de classe entre as mulheres que começam a se rebelar contra seu status subordinado”. Talvez a orientação principal da Parte II do documento possa ser resumida no slogan “Não há libertação das mulheres sem revolução socialista, não há revolução socialista sem libertação das mulheres”. Nossa análise inicial, no entanto, baseava-se excessivamente em nossa experiência do movimento feminista nos países capitalistas centrais, o que foi corrigido e desenvolvido notavelmente com o trabalho sobre o movimento feminista latino-americano.

A compreensão geral de que as opressões específicas não serão superadas simplesmente por lutas nos locais de trabalho, sem a liderança ativa dos movimentos dos oprimidos, apontando para a realidade das opressões específicas, é a mais pertinente. Em meno mas significativa medida, concordamos também com textos que tiraram lições das lutas dos camponeses pobres e dos trabalhadores agrícolas, dos movimentos LGBTQIA+, das lutas em torno do endividamento, dos movimentos antiglobalização e antiguerra e dos movimentos indígenas e ambientais, bem como, é claro, sobre o papel dos sindicatos. 

Convulsões sociais, contra-ataques e alternativas, Congresso Mundial 2018.

I) Cada movimento social tem suas próprias história e dinâmica específicas, além de localização na relação de forças atual. Existem algumas diferenças importantes entre os movimentos sociais dos oprimidos e os movimentos sociais mais gerais. Neste texto, procuramos também extrair alguns princípios gerais que consideramos importantes.

A) Os chamados “movimentos sociais” são formas fundamentais de mobilização de setores das classes trabalhadoras e populares, incluindo os mais explorados, oprimidos e frequentemente marginalizados, em direção à mudança social – incluindo-os, potencialmente, como parte de uma mudança revolucionária. Um  movimento social é, antes de tudo, a forma elementar de organização de um setor para se defender contra o sistema seja em questões sociais e econômicas, seja democráticas ou discriminatórias. Nesse sentido, os movimentos sociais representam a força social dos setores explorado e oprimidos. As pessoas entram em ação em torno de sua própria condição material e situação política e, a partir da experiência, tiram lições políticas mais gerais. Deste ponto de vista, o trabalho nos movimentos sociais é uma área fundamental para o recrutamento para nossas organizações, e para a formação de camaradas no trabalho de massas, particularmente daqueles de grupos mais marginalizados, 

Os movimentos sociais influencim-se mutuamente – por exemplo, as questões climáticas são aceitas como parte da agenda sindical em muitos lugares, de uma forma que não eram há uma década. Desempenham um papel político central na sociedade, porque as mobilizações que levam adiante confrontam as políticas dos capitalistas e dos seus governos para situações de opressão ou exploração. As muitas crises acumuladas na atualidade, a ecológica, a  democrática e a econômico-social, reforçam o peso e a potencialidade dos movimentos sociais.

B) Esses movimentos são de importância estratégica para nós porque essas mobilizações das classes trabalhadoras em torno de suas demandas são a base  da luta de classes e para construção de relações políticas de força contra o capitalismo. São, portanto, o lugar das demandas anticapitalistas de transição.

C) Eles têm outra dimensão estratégica, que é a de ser o meio no qual pode se desenvolver  a auto-organização dos e das exploradas e oprimidos, para que estes estas tomem seu destino e seus interesses em suas próprias mãos, e se lancem à ação política independente. Assim, trabalhadores e trabalhadoras esboçam o que será uma sociedade baseada na democracia de baixo para cima: estruturas de auto-organização nos locais de trabalho, bairros e cidades. Isso não significa que serão ferramentas suficientes para alcançar a democracia de conselhos – isso envolverá necessariamente uma organização revolucionária –, mas são um pré-requisito essencial.

Promovemos os princípios da Comuna de Paris (rotação de cargos, transparência na prestação de contas e democracia direta na tomada de decisões), aos quais acrescentamos a necessidade de recriar a cultura da transmissão ao vivo, sem segreedos, de qualquer processo de negociação com governos e autoridades, como forma de pôr fim à cultura antidemocrática do sigilo.

Lutamos para que os movimentos zelem por sua independência em relação aos poderes constituídos, incluindo os partidos que afirmam lutar contra o sistema. As experiências recentes dos governos de Lula, do Syriza, da Primavera Árabe e muitos outros mostram a importância da existência do movimento de massas para garantir os interesses dos e das exploradas.

II) Buscamos, portanto, defender a construção de movimentos sociais e intervir neles, lutando por demandas e formas de organização que se baseiem nos interesses da classe trabalhadora. Lutando para que uma perspectiva de luta de classes seja adotada pelo movimento como um todo. Nossos militantes devem teer a atitude de ouvir e aprender com outros ativistas, em vez de assumir que temos todas as respostas.

III) Lutamos pela democracia mais ampla possível dentro dos movimentos sociais e esperamos garantir que os mais explorados e oprimidos tenham voz para suas demandas e representação. Isso significa que lutamos por estruturas e processos claros de delegação – argumentando tanto contra a “tirania da ausência de estrutura”, como contra a burocratização, como a melhor maneira de envolver ativamente o máximo número de pessoas.

IV) Ao mesmo tempo em que lutamos pela unidade mais ampla do movimento como um todo, às vezes participamos – ou até criamos – uma organização/grupo/rede de forças mais esquerdistas que desenvolve uma intervenção pública comum dentro de um movimento em todas ou algumas questões-chave. É difícil estabelecer quando isso é apropriado, mas algumas das circunstâncias relevantes incluiem: quando a liderança existente é burocratizada e não consegue agir, e/ou quando existe o perigo de segmentos  significativos (particularmente entre os jovens) abandonem a atividade devido à falta de sucesso. Outro contexto em que podemos nos organizar com outras forças é quando o movimento como um todo não está ouvindo as demandas de setores importantes – por exemplo, povos indígenas/primeiras nações, migrantes, pessoas trans, etc. As decisões de participar ou criar tais estruturas devem sempre ser tomadas coletivamente através de nossa própria organização – seja através de frações ou comissões para coordenar esse âmbito do trabalho, seja através de nossas estruturas de liderança. Devemos avaliar regularmente se este é o caminho certo e se somos capazes de defender nossas próprias ideias de forma independente e se estamos fazendo isso onde é relevante.

V) Lutamos pela maior coordenação dos movimentos sociais em torno de demandas e temas semelhantes em nível global, que sejam amplamente compreendidos dentro do movimento e façam sentido naquele momento específico. Procuramos garantir que as estruturas a nível internacional não reflitam apenas partes dos movimentos que têm acesso a financiamento – uma luta que deve ser facilitada com o desenvolvimento de tecnologias que permitam reuniões online com tradução. Lutamos para garantir que sejam genuinamente internacionais e reflitam as preocupações e exigências de todas as partes do mundo e não sejam dominadas por organizações do Norte global.

vi) Lutamos para que todos os movimentos sociais adotem uma abordagem interseccional, sem perder o foco em suas demandas específicas.

VII) Lutamos pela cooperação e apoio mútuo entre diferentes movimentos sociais. Apoiamos o desenvolvimento dos Fóruns Sociais Mundiais, nos quais as assembleias gerais dos movimentos sociais foram uma oportunidade para declarações conjuntas destacando os laços e pontos de convergência de vários setores,  incluindo os do sindicalismo. Hoje, essa ideia é melhor resumida na ideia de um “movimento de movimentos” – mas a ideia não está realmente concretizada em nenhum lugar, pelo menos em nível internacional.

VIII) Em diferentes contextos, os movimentos podem se deparar com a situação em que partidos que defendem as políticas dos próprios movimentos, nos quais ativistas e líderes de movimentos são ativos, conseguem conquistar o controle de governos locais ou mesmo nacionais. Os líderes dos movimentos, como ativistas desses partidos, podem então receber e aceitar cargos de responsabilidade nesses governos. Da mesma forma, esses governos podem oferecer cargos a ativistas de movimentos não alinhados, argumentando que eles “representarão” os movimentos. Defendemos que a postura dos movimentos deve ser a de que permaneçam totalmente independentes de todas as estruturas governamentais. No entanto, os movimentos podem ter dificuldades em continuar a mobilizar de forma autônoma frente a governos que gozam de apoio popular e afirmam apoiar e/ou atender as demandas populares.

IX) Embora nosso método de organização dentro dos movimentos sociais seja o de incentivar a participação das bases e a independência política frente ao Estado, não nos opomos, em certas situações, a investir energia — ou mesmo criar — organizações não governamentais (ONGs). A avaliação sobre se isso deve ser feito ou continuar deve ser feita coletivamente, por meio das estruturas democráticas da nossa organização, avaliando se as regras que as regem e o acesso ao financiamento, em termos gerais, reforçam os objetivos políticos estabelecidos abaixo ou os restringem.

X) Defendemos que os movimentos sociais levantem a questão do poder. Para que possam fazê-lo, sem se perderem no esquerdismo ou no substitucionismo, devem ser suficientemente amplos para que a sua força e natureza possam objetivamente confrontar o poder da classe dominante. Foi o caso do Hirak na Argélia, das revoluções árabes, dos Indignados no Estado espanhol, do movimento camponês na Índia e da mobilização popular no Chile, por exemplo. Em linha com os grandes movimentos revolucionários do século passado, defendemos que os movimentos de massas, com estruturas de auto-organização do proletariado em particular, são uma forma alternativa de poder à da burguesia. Classicamente, defendemos a assembleia constituinte, ligada a reivindicações transitórias, particularmente em questões sociais – mesmo que esse tipo de bandeira tenha que ser ajustada caso a caso.

XI) Acreditamos que os movimentos devem continuar a se organizar mesmo após a tomada do poder, assim como após a conquista de suas principais reivindicações ou em uma mudança de governo em uma direção “progressista”. Notamos, por exemplo, a importante experiência do movimento de mulheres na Nicarágua, que luta contra a corrupção da revolução sandinista original, bem como pelas reivindicações específicas das mulheres. Isso ficou nítido nas dificuldades do movimento dos sem-terra no Brasil em continuar a luta por uma reforma agrária real frente aos dois primeiros governos Lula.

2. Movimentos sociais reacionários

Dentro de nossa tradição, tendemos a ver os movimentos sociais como inerentemente progressistas. No entanto, não devemos ignorar o fato de que a direita radical tem toda uma tradição de organização em torno de questões sociais. Camaradas no mundo árabe têm frequentemente falado sobre a tradição dos fundamentalistas de organizar serviços sociais dirigidos às camadas mais pobres da sociedade para fornecer alimentos, medicamentos, etc., onde o Estado não o faz. Essa também é uma experiência dos camaradas no Paquistão e, mais ainda, na Índia, onde o BJP de Modi e suas organizações predecessoras foram construídas sobre essa base. Os evangélicos no Brasil tiveram uma trajetória semelhante ao se “organizar” nas favelas. O Pegida (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente) é outro exemplo, assim como as organizações antivacinas no Norte Global e os movimentos antiaborto internacionalmente.

Em geral, esses movimentos não têm democracia, são muito mais como organizações “de fachada” para partidos políticos de extrema direita. Quando suas demandas fundamentais são reacionárias, obviamente não temos nada a ver com eles, mas pode haver situações em que possamos fazer parte de uma mobilização comum em torno de demandas que apoiamos, enquanto buscamos conquistar sua base para um movimento social genuíno baseado na democracia e em um programa mais completo e positivo. Em outras situações, os movimentos sociais dos quais participamos podem preferir convocar suas próprias mobilizações, que podem buscar alcançar o mesmo objetivo – é uma questão de avaliar a relação de forças e o fato de que não queremos fazer nada que dê credibilidade a esses movimentos reacionários.

Em qualquer caso, isso reforça a necessidade de fazer parte dos movimentos sociais e de lutar dentro deles para avançar com reivindicações e programas que desafiem as políticas capitalistas e a organização capitalista da sociedade, que organizam a democracia e a solidariedade, face a programas racistas ou reacionários que podem tentar implementar ideias de extrema direita que reforçam os interesses capitalistas.

3. Erros da esquerda

Infelizmente, nossa política e métodos nos movimentos sociais não é universal na esquerda radical. Há uma longa tradição nas organizações stalinistas e maoístas de, em vez de construir movimentos sociais unitários, criar organizações setoriais cujo objetivo principal não é levar adiante a luta, mas atuar como correias de transmissão para seus próprios partidos. Embora tal abordagem não seja teorizada, tanto a IST (com o SWP britânico no seu centro) como a CWI (com o Partido Socialista Britânico no seu centro) têm frequentemente tendido a utilizar esse caminho. Nesses casos,  outra tendência é que o investimento de ativistas de liderança nesses projetos seja esporádico e se dê com base  não na importância objetiva das questões mobilizadas, mas no potencial de recrutamento que eles julgam que uma iniciativa pode render.

Coisas semelhantes acontecem em todos os continentes e provavelmente em todos os países, o que é problemático porque mina a unidade potencial do movimento relevante, mas também porque dá má fama a toda a esquerda radical dentro desses movimentos sociais.

Ao mesmo tempo, devemos nos proteger contra o perigo oposto: que nosso apoio à autonomia e à democracia dos movimentos sociais não resulte em nossa incapacidade de promover nossa política geral e conquistar militantes para nossa bandeira.

4. Perigos gerais nos movimentos

a) Burocratização/falta de democracia

Existe um perigo real de burocratização em qualquer movimento social, a menos que aqueles que são ativos na base tenham influência real na direção da organização. Isso é verdade mesmo em movimentos sociais que não tem funcionários remunerados ou nos quais as condições materiais dos funcionários remunerados são pouco diferentes das dos trabalhadores e trabalhadoras da base.

Sobre os voluntários não remunerados: Quando novas organizações são lançadas, geralmente há um objetivo comum urgente e assim muitas pessoas não prestam atenção a essas questões de funcionamento. No entanto, uma vez que os erros são cometidos, é mais difícil mudar depois e é provável que isso prejudique a capacidade de a organização se sustentar a longo prazo. Quando as organizações ficam maiores, o perigo é maior, pois as estruturas se tornam mais pesadas. E algumas organizações se tornam hostis à discussão sobre como evitar esses perigos, porque se concentram em fazer lobby e influenciar políticos ou ONGs.

b) Clientelismo e autoajuda

O texto América Latina: Dinâmicas dos movimentos de massa e correntes feministas, do Congresso Mundial de 1991, apontou o perigo do clientelismo, ou seja, da expectativa de que o apoio a (algumas) das demandas do movimento seja retribuído com apoio do  movimento ao partido político que o faz. Levantou também a ameaça do autoajudismo: ou seja, de o movimento fornecer serviços a seus membros, que deveriam ser fornecidos gratuitamente pela sociedade como um todo.

“Colocar exigências ao Estado para a solução de problemas sociais e políticos tem a enorme vantagem de colocar a responsabilidade em quem deve ser responsável, na sociedade como um todo e em suas instituições, facilitando que a luta de massass adquira um caráter político. As lutas e mobilizações bem-sucedidas promovem tanto a sua consciência geral quanto a sua força e confiança em si mesmas. A prática nos ensinou, no entanto, que a dependência frente ao Estado não é isenta de perigos. Por um lado, pode haver uma dinâmica clientelista e, por outro, ao conquistar parcialmente certas reivindicações, as mulheres podem se tornar absorvidas por tarefas administrativas de prestação de serviços.”

Os perigos que o texto citado levanta, e que devem ser evitados com a mais completa democracia do movimento, são dificuldades que todos os movimentos sociais, particularmente nos países do Sul Global, enfrentam. Às vezes, os movimentos que se organizam para atender às necessidades imediatas das pessoas podem ser essenciais para atrair mais forças para a atividade. Por exemplo, os camaradas no Paquistão fornecem alimentos para presos políticos libertados, que não têm outras formas de sustento e são os únicos provedores de suas famílias. Iniciativas como essa podem ser úteis para pressionar o Estado a fornecer serviços de forma contínua e/ou mais ampla. Na Grã-Bretanha da década de 1970, por exemplo, grupos feministas fizeram campanha por creches comunitárias e, em alguns casos, ocuparam prédios vazios adequados e montaram elas mesmas as creches, resultando na introdução desses serviços por vários conselhos locais.

c) Fragmentação

Embora sejamos a favor da convergência das lutas e da solidariedade de um movimento com outro — o que às vezes é chamado de “movimento dos movimentos” —, isso não significa que todos os movimentos adotem as demandas de outros, nem as demandas políticas geerais. É excelente que a Via Campesina tenha seções de mulheres e jovens, com eventos setoriais específicos que respondem às suas necessidades setoriais, como parte da campanha em torno da soberania da terra e dos alimentos. De outro lado, a sugestão de que  o Ende Gelände, o movimento de ação direta ambiental na Alemanha, tome posição sobre todas as questões políticas impõe o risco de fragmentar e enfraquecer o movimento.

d) Esquerdismo

Devemos também lutar contra as lógicas esquerdistas dentro dos movimentos sociais. Estas se caracterizam pela busca permanente da radicalidade pela radicalidade (na linha política e nos métodos de luta), pela recusa a acordos e a qualquer aliança com outras franjas progressistas de movimentyos consideradas pouco radicais; e pela desconexão e desconfiança em relação à consciência de classe das massas. Em um período marcado pelo declínio dos movimentos revolucionários, esse tipo de lógica tende a ganhar maior importância, buscando contrabalançar a relativa fraqueza dos movimentos de massa com um radicalismo abstrato.

5. Ascensão e queda do movimento antiglobalização

O ponto alto da coordenação dos movimentos sociais a nível internacional (e regional) foi do desenvolvimento dos Fóruns Sociais Mundiais (FSM) e dos fóruns regionais associados. O FSM aconteceu pela primeira vez em Porto Alegre, Brasil, em 2001, e foi realizado anualmente até 2016. A retirada da Marcha Mundial das Mulheres e da Via Campesina do Conselho Mundial do FSM por volta de 2005 foi tanto um reflexo quanto uma contribuição para o declínio de sua importância.

A curva de participação do fórum foi irregular, refletindo, em certa medida, os altos e baixos dos principais movimentos sociais envolvidos, mas também desenvolvimentos políticos mais gerais. O contexto foi, primeiro, o ciclo de lutas de 1995 a 2005 e, depois, o ciclo seguinte. É notável que nem o ciclo de lutas que levou aos movimentos indignados/Occupy, nem a ascensão da Primavera Árabe, tenham tido o FSM como referência, nem tenham levado a movimentos sociais permanentes com coordenação internacional.

O contexto político dos primeiros fóruns foi o das grandes lutas contra o neoliberalismo  na América Latina, na esteira da revolta zapatista em Chiapas em 1994 e do crescimento do PT, que levou à primeira eleição de Lula em 2003. A manifestação massiva contra a OMC em Seattl, em 1999 – envolvendo um contingente significativo de sindicalistas – também foi um fator importante, assim como as mobilizações contra o Banco Mundial, o FMI e o G8 (Washington em abril de 2000, Praga em setembro de 2000, Gênova em julho de 2001), particularmente na América do Norte e na Europa.

Um terceiro impulso fundamental para alguns dos primeiros fóruns foi a força de um movimento internacional contra a guerra, muito significativo a partir do outono de 2002, protestando contra a invasão do Iraque – antes da invasão em março de 2003 e continuando depois dela. Vale a pena explorar até que ponto os desenvolvimentos políticos após a queda do muro de Berlim abriram um debate sobre alternativas ao capitalismo. Essas correntes não foram as únicas organizações importantes envolvidas no FSM desde o início. Outras organizações importantes incluíram o CADTM (fundado na Bélgica em 1990), a Via Campesina (fundada na Bélgica em 1993), a Attac (fundada na França em 1998) e a Marcha Mundial das Mulheres (fundada em Quebec em 2000). Sindicatos e sindicalistas apoiaram o projeto, incluindo a CUT do Brasil, a KCTU da Coreia do Sul, a WOSA da África do Sul, a CGT e a FSU da França, sindicatos da DGB, como IG Metall ou ver.di, as confederações belgas FGTB, CSC, na Grã-Bretanha UNITE e RMT, na Itália FIOM, sindicatos americanos da AFLCIO em torno da Labor Notes e a corrente de sindicatos sindicalistas revolucionários (CGT do Estado espanhol, COBAS italiano, STI, USB, Conlutas no Brasil, CTA argentina, SUD Solidaires da França, agora parte da Rede Internacional de Solidariedade e Luta Trabalhista.

Após o primeiro fórum em 2001, as organizações brasileiras que garantiram o fórum elaboraram uma “Carta de Princípios”. Duas coisas merecem comentários: primeiro, a atitude em relação aos partidos políticos (que no texto são quase sempre confundidos com partidos governamentais), por exemplo: “Nem representações partidárias nem organizações militares participarão do Fórum. Líderes governamentais e membros do legislativo que aceitem os compromissos desta Carta poderão ser convidados a participar a título pessoal”. Além disso, os partidos não puderam organizar workshops como parte do fórum nem ter estandes no local. Mas a declaração também reflete um crescimento das ideias autonomistas dentro do movimento, enfatizando a ideia de poder paralelo em vez da necessidade de confrontar e desmantelar o Estado. O slogan “Outro Mundo é Possível” poderia ser e foi apoiado por correntes com diferentes abordagens sobre este e outros debates.

Uma segunda declaração proibiu os Fóruns, como tais, de emitir declarações ou comunicados, mas, ao mesmo tempo, criou um espaço para assembleias de movimentos sociais. A IV Internacional investiu recursos importantes no movimento antiglobalização, no movimento contra a guerra e em outros movimentos do processo do fórum social, bem como no próprio FSM. Nossos companheiros desempenharam um papel importante na convocação da assembleia de movimentos sociais que emitiu importantes declarações entre 2005 e 2015, que tiveram grande impacto, mesmo estavam um pouco à margem do fórum em si.

Devemos avaliar até que ponto a relativa atrofia daquele movimento foi resultado de mudanças na situação política internacional (por exemplo, o recuo da Maré Rosa, a ascensão da nova extrema direita, o declínio do movimento contra a guerra, etc.) e até que ponto foi resultado de erros estratégicos da liderança/correntes políticas dominantes no movimento.

6. Conclusão

Este texto se baseia em nossas discussões coletivas sobre a importância dos movimentos sociais na luta pelo socialismo: sua importância estratégica na mobilização e politização das camadas exploradas e oprimidas e o desenvolvimento de elementos programáticos e demandas que enriquecem nosso próprio programa. Esta é uma abordagem que representa um grande ganho para nossa corrente política ao longo de décadas e estabelecê-la de forma mais sistemática é uma tarefa importante. Para produzir um resultado mais abrangente, que tenha impacto em nossa teoria e prática além do próprio Congresso, precisamos de uma discussão mais ampla.

Será importante receber contribuições complementares sobre as conclusões teóricas e práticas derivadas deste trabalho. Já podemos indicar uma série de temas a serem desenvolvidos:

• Os movimentos de camponeses pobres, trabalhadores agrícolas e agricultores desafiam as premissas dos primeiros marxistas sobre a relação estratégica entre o proletariado e o campesinato?

• O papel estratégico das comunidades indígenas e sua contribuição essencial para outros movimentos sociais, como os movimentos feministas e/ou ambientalistas;

• Por que o movimento contra as dividas financeiras teve um sucesso particular em ampliar seu alcance internacional durante um período em que outros movimentos recuaram ou precisaram mudar significativamente seu foco e/ou formas organizacionais.

• O papel dos movimentos sociais reacionários, particularmente da Ásia e do Norte da África;

• A relação atual de forças nos movimentos feminista e LGBTQIA+ e quaisquer novos desafios teóricos que estamos enfrentando.

Também observamos que nossa discussão coletiva é pouco desenvolvida em duas questões específicas de opressão – em torno do racismo e da racialização e em torno das deficiências. 

A primeira é particularmente complexa porque a história da auto-organização dos e das racionalizadas não é apenas muito heterogênea entre as várias regiões e países do Sul Global, mas também dentro do Norte Global (porque não diz respeito às mesmas populações). Diferentes fatores históricos e atuais, como a natureza das relações coloniais, a presença de uma população indígena pré-colonial, uma população afrodescendente resultante de uma economia escravocrata, as diferentes formas e causas dos movimentos migratórios, moldam as expressões do racismo e como ele é vivenciado pelas oprimidas, assim como as formas de lutas e movimentos antirracistas. Ao mesmo tempo, nossas respostas aos desafios colocados pelo radicalismo negro e pelo marxismo negro são pouco desenvolvidas. Por fim, não coletivizamos a intersecção entre a auto-organização indígena e negra, que é importante, por exemplo, no Brasil. Mais uma vez, seria importante ter contribuições sobre essas questões.

Há uma grande quantidade de teorizações marxistas, feitas por pessoas com deficiência dentro dos movimentos e por acadêmicos individuais. No entanto, há menos interseções entre os movimentos de pessoas com deficiência e outros movimentos sociais, embora existam organizações de pessoas com deficiência que são interseccionais, notadamente os movimentos de mulheres com deficiência. Apesar da fragilidade histórica da esquerda como um todo na organização das pessoas com deficiência, e na participação e solidariedade com seus movimentos, é importante que sejamos defensores consistentes do modelo social por elas e eles construído.Segundo eles, a exclusão social das pessoas com deficiência é uma necessidade da sociedade capitalista. Apoiamos a auto-organização autônoma das pessoas com deficiência e lutamos para que todos os movimentos e a esquerda se organizem de forma acessível, a fim de garantir sua inclusão. Isso significa se solidarizar com as demandas das PCD e de suas organizações, bem como com as táticas por elas escolhidas. Este é um tema sobre o qual nossas organizações estão trabalhando, por isso  agradecemos contribuições.

Os movimentos sociais estão inevitavelmente nascendo e sendo remodelados no contexto de grandes crises, o que pode trazer novas questões ao debate. Seria negligente ignorar o importante desenvolvimento do movimento de solidariedade com o povo palestino, que surgiu desde 7 de outubro de 2023 e a resposta genocida do Estado israelense a ele. Fizemos algumas avaliações dos pontos fortes do movimento – incluindo sua disseminação internacional, a juventude e a feminização de sua liderança, a força crescente da participação judaica em solidariedade ao povo palestino e a relação positiva desse movimento de solidariedade com outros movimentos sociais, bem como seus pontos fracos – particularmente sua relativa falta de força no mundo árabe, bem como, obviamente, a relação de forças terrível para o povo palestino como um todo. Essas avaliações precisam ser aprofundadas e/ou atualizadas.

A compreensão e a orientação para os movimentos sociais aqui desenvolvidas são resultantes da atuação política da IV Internacional em nível nacional e internacional.

* * *

Apêndice 1 – O movimento feminista

Em 2021, a IV  Internacional adotou uma resolução intitulada  O novo ascenso do movimento feministaque continua a ser útil como complemento ao presente texto, no tema do estado atual do movimento de mulheres.

Apêndice 2 – Organização LGBTQIA+

Não pretendemos fazer retrato completo da situação da luta ou do movimento LGBTQIA+, mas destacar alguns dos principais problemas que enfrenta, com base na nossa experiência coletiva, mas parcial.

1. No que diz respeito à atitude das classes dominantes, estamos num ponto contraditório em relação à política LGBTQIA+, tal como, em certa medida, estamos em relação a outras questões sociais. Por um lado, políticas homofóbicas, misóginas e particularmente transfóbicas são mobilizadoras centrais para os principais movimentos de extrema direita. Trump e aqueles que o rodeiam são os mais visíveis, mas não devemos subestimar o papel das correntes cristãs evangélicas na África e na América Latina ou os ataques aos direitos parentais e de adoção de casais do mesmo sexo na Itália de Meloni. 

Outros Estados afirmam defender os direitos LGBTQIA+ dentro de um quadro de “direitos humanos”, ao mesmo tempo que se concentram na ideia de que 1) a família LGBTQIA+ (tal como as famílias heterossexuais) pode substituir os serviços estatais na reprodução social 2) o “mercado rosa” é um local útil para o capital obter lucros. Esta tendência, que existe há décadas, está se adaptando à agenda da extrema direita, embora não de forma tão grotesca como no caso da migração. Ao mesmo tempo, sempre foi uma agenda mais direcionada e acomodadora para os homens gays cis.

2. O movimento LGBTQIA+ tem muito poucas estruturas ou eventos internacionais, o que dificulta a avaliação do equilíbrio político das forças. Isso é agravado pelo fato de que o Fórum Social Mundial e os fóruns regionais associados, que proporcionavam algum foco para grupos radicais dentro do movimento, não funcionam mais da mesma maneira. No entanto, há algumas tendências gerais que podemos observar.

3. No lado negativo, observamos – e precisamos encontrar maneiras eficazes de denunciar e se opor – ao desenvolvimento de uma corrente antitrans visível. Essa tendência reacionária não se limita a lésbicas, gays e, muito ocasionalmente, bissexuais – muitas de suas figuras mais proeminentes são mulheres cis. É uma minoria entre os ativistas, mas não deixa de ser profundamente perniciosa. Politicamente, alguns dos antitrans parecem felizes em fazer causa comum com a extrema direita, ao mesmo tempo em que promovem uma visão de “direitos sexuais” que se vale de noções fixas de gênero e sexualidade (às vezes dadas por Deus), e da necessidade de “proteger” crianças e jovens da possibilidade de “mudar de sexo/gênero”, o que é profundamente divisivo. A maioria desses antitrans também tem compreensão moralista do sexo, sendo profundamente hostis aos e às profissionais do sexo.

4. No lado positivo, porém, há uma série de elementos a assinalar: 

I) Entre os jovens, apesar do crescimento das ideias de extrema direita, há em muitos contextos uma atitude mais positiva em relação às diferentes expressões da sexualidade e de gênero. Isso trouxe o desenvolvimento/proliferação de novas identidades, como não binário e agênero, que não existiam realmente da mesma forma em períodos anteriores, bem como, em alguns contextos, a formações sociais um tanto separadas para mulheres trans e homens trans. Existem alguns perigos aqui em termos de fragmentação – agravados pelo fato de que as lições dos períodos anteriores de luta não têm canais fortes para serem exploradas. Além disso, o nível de atomização e isolamento imposto pelo capitalismo tardio aos mais marginalizados pode resultar em sectarismo nascido da frustração.

II) Formas de organização que surgiram da luta contra o HIV/AIDS, especialmente nos países capitalistas avançados, tiveram um impacto positivo em algumas das organizações coletivistas em resposta à pandemia da COVID-19, em termos de luta por provisões estatais para proteger os mais vulneráveis. A varíola dos macacos (M-Pox) não teve realmente o mesmo impacto, mas em um mundo onde a crise ambiental significa que outras pandemias são inevitáveis, devemos construir sobre isso.

III) O envolvimento visível de muitos ativistas queer, incluindo militantes trans e lésbicas, em campanhas para defender e ampliar as lutas pela autonomia corporal. A luta para defender e ampliar os direitos ao aborto na lei e na prática continuou a ser crucial em muitos territórios e continentes. Ao mesmo tempo, o envolvimento de ativistas queer nessas campanhas muitas vezes conquistou um apoio mais amplo para a luta das pessoas trans, particularmente dos jovens trans, por cuidados de saúde que afirmam a vida.

IV) Durante o movimento Black Lives Matter, a visibilidade da menção específica às vidas negras trans foi particularmente encorajadora. Não podemos tirar conclusões sobre o que isso diz sobre a relação entre os movimentos negros/indígenas/queer e trans em diferentes territórios.

V) Ativistas queer e feministas radicais têm frequentemente se manifestado em solidariedade à Palestina, rejeitando o pinkwashing da sociedade israelense sob o pretexto do sexismo e heterossexismo indubitáveis do Hamas. Esses ativistas apontam, com razão, que as mulheres palestinas e as pessoas LGBTQIA+ são igualmente vítimas do genocídio israelense, que a opressão das pessoas LGBTQIA+ palestinas sob o domínio israelense (dentro e fora da “Linha Verde”) é agravada pelas leis de apartheid que as visam como palestinas, e que a sociedade israelense está longe de ser um modelo de direitos das mulheres ou LGBTQIA+, mesmo em comparação com as democracias capitalistas da Europa Ocidental ou das Américas. Essa tendência tão positiva reflete um trabalho antigo de ativistas e organizações queer na região e dentro do movimento de solidariedade internacional, mas se tornou muito mais evidente no último ano e meio. Embora tenha havido algumas tensões em alguns países (por exemplo, inicialmente na Dinamarca), no geral foi um desenvolvimento que tornou uma parte importante do movimento queer mais visível do que antes, claramente alinhado com o anti-imperialista e mais acessível a comunidades que anteriormente podiam ter sido excluídas. Os pontos levantados por estes ativistas precisam de ser integrados no discurso do movimento de solidariedade mais amplo.

Apêndice 3 – Antirracismo 

Em termos de racismo e racialização, apesar das dificuldades observadas na conclusão, é útil notar que dois grandes eventos mundiais tiveram uma forte influência e dividiram esses movimentos: a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Relacionada,  das Nações Unidas, em Durban, em 2001, e os ataques de 11 de setembro de 2001. Na Conferência de Durban, os debates acalorados e as afirmações contraditórias tiveram como foco saber se o sionismo era uma forma de racismo, se o aumento do antissemitismo se devia à opressão dos palestinianos pelos vários governos do Estado israelita, a exigência de um pedido de desculpas individual por parte de todos os Estados que se envolveram na escravatura no passado e o reconhecimento da escravatura como crime contra a humanidade, com reparações; a reafirmação dos direitos dos refugiados e a necessidade de proteger as minorias étnicas, culturais, linguísticas e religiosas; a discriminação contra os ciganos e os viajantes; e o reconhecimento explícito da ligação entre sexismo e racismo. Por seu lado, os ataques às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, foram utilizados como pretexto para ampliar uma nova forma de racismo que, em alguns países (França e Bélgica), foi difícil reconhecer como tal: a islamofobia. Estamos assistindo a duas grandes mudanças na luta contra o racismo: na década de 1990, o abandono do racismo biológico (não existe raça humana), substituído pelo racismo cultural; e, mais tarde, o racismo religioso. Na década de 2000, a superação do antirracismo moral, baseado no antirracismo estatal e na sua luta contra a xenofobia (estereótipos e preconceitos) e a discriminação interpessoal, por um movimento mais radical, impulsionado pelas gerações mais jovens de pessoas racializadas. Estas querem confrontar o racismo institucional, sistêmico e estrutural, especialmente aquele desenvolvido pelo Estado, pelo seu aparelho e pelos seus governos.

Em 2020, um terceiro evento abalou o cenário do antirracismo: o Black Lives Matter, a maior mobilização antirracista desde a década de 1960 e a luta dos negros americanos pelos direitos civis. Em todo o mundo, centenas de milhares de manifestantes saíram às ruas para exigir mudanças radicais e duradouras no lugar dos negros e afrodescendentes em nossas sociedades (descolonização das mentes, da educação, dos museus e dos espaços públicos). Essas lutas destacaram a violência policial e as práticas racistas em particular.

A partir de agora, a luta contra o racismo deve abranger todas as formas dele: discriminação de negros e negras em que são  maioria ou minoria expressiva; minorias étnicas e religiosas; migrantes/requerentes de asilo e requerentes de asilo rejeitados; antissemitismo, eslavofobia, romanofobia (pelo menos na Europa). Ao mesmo tempo em que apoiamos a auto-organização dos povos oprimidos e racializados, devemos tentar unificar essas lutas em um movimento radical, amplo, pluralista e unitário (convergente), defendendo uma abordagem marxista interseccional. Cabe a nós estabelecer as ligações entre as políticas imperialistas e as guerras para apoiar ditaduras e controlar e/ou saquear matérias-primas para as multinacionais ocidentais, russas e chinesas; as políticas de ajuste estrutural e as dívidas no Sul global, o aquecimento global, etc., bem como as várias causas da migração para as metrópoles. Daí a importância de abrir as fronteiras e defender a liberdade de circulação e de estabelecimento, exigindo ao mesmo tempo que os países do Sul global possam se desenvolver e manter seus intelectuais.

Por fim, lutar contra o fascismo significa lutar contra os partidos de extrema direita e todas as estruturas (mídia, políticas estatais, partidos governamentais) que ajudam a normalizar sua presença e suas ideias na arena política. Significa pensar estrategicamente (a longo prazo) e taticamente (a curto prazo) sobre nossas alianças para combater a ameaça fascista. O essencial em nossas lutas antifascistas é estabelecer essa conexão entre os alvos primários do autoritarismo e da repressão estatal e os alvos específicos da extrema direita: migrantes e pessoas racializadas, mulheres, pessoas LGBTQIA+, minorias étnicas e religiosas, sindicalistas e outros ativistas de esquerda. Não seremos capazes de fortalecer nossas lutas antifascistas sem a presença daqueles que sofrem essas opressões de forma mais violenta, e é necessário reconhecer a importância do racismo na sociedade em geral e na ideologia fascista para poder enfrentar essas opressões.

28 de fevereiro de 2025